A nova cara do imigrante

Acostumada ao elogio às proezas do imigrante italiano, Caxias do Sul depara-se com um novo fluxo migratório. Agora, de senegaleses

Por Vagner Espeiorin | vaespeio@ucs.br
Fotos: Claudia Velho

As vozes sibilantes indicam que um idioma estranho ao português está sendo falado. No número 706 do edifício Vitrine Central, tudo chama atenção. O barulho é diferente. O jeito de se comunicar é diferente. As pessoas têm aparência diferente. Caxias do Sul também não é mais a mesma. É no pequeno espaço comercial do prédio em frente à Praça Dante Alighieri que os imigrantes senegaleses em Caxias do Sul matam a saudade dos familiares que ficaram no país da África Ocidental. No local, funciona um sistema de telefonia que faz ligações para fora do Brasil a um preço mais barato do que o comum. Por apenas R$ 0,85 o minuto, eles conseguem se comunicar com quem ficou no Senegal. O espaço lota. São quatro cabines pra atender uma demanda que dia após dia, só cresce.

Mor Ndyane é um dos imigrantes do grupo que ocupa a sala numa manhã de segunda-feira. Saiu do Senegal em 2007. Mas a cidade fria da Serra gaúcha não foi seu primeiro destino na América do Sul. Ele foi parar na Argentina, num período em que a economia do país vizinho exibia pujança. Com um crescimento econômico baixo dos "hermanos", o fluxo migratório senegalês seguiu para cá. Chegou ao Rio Grande do Sul em 2011. Em Passo Fundo, Mor ficou por poucos meses até resolver migrar novamente. Em Caxias, conseguiu emprego na JBS Alimentos - antigo frigorífico Frangosul.

O africano, de 38 anos, é um exemplo de imigrante que tem modificado a rotina da cidade, transformado a feição de Caxias e alertado as autoridades para a necessidade de se pensar em políticas públicas destinadas aos estrangeiros. Ele deixou a cidade de Thiès, distante 73 quilômetros da capital Dakar, em busca de emprego. No Senegal, permaneceu a esposa, para quem destina parte do que recebe por aqui. Na mesma condição de Mor estão muitos outros senegaleses.

"É uma migração laboral. Ela ocorre em busca de trabalho. A Europa, que já foi um destino, está em crise. Já existiam senegaleses na Argentina há 10 anos. Agora, eles vieram para o Brasil e estão em Caxias do Sul", explica a professora do Centro de Ciências Humanas, Vania Beatriz Merlotti Herédia. A socióloga coordena a pesquisa "Migrações internacionais no Sul do Brasil", que é desenvolvida pela UCS em parceria com estudiosos da Universidade Federal de Santa Maria e da Universidade de Passo Fundo. Não por acaso, as instituições parceiras se localizam em cidades que também têm recebido muitos africanos. Faz mais sentido ao se observar que tanto Passo Fundo como Santa Maria mantêm bons índices de crescimento. A primeira com um foco nos setores industrial e agrícola. A segunda, no comércio.

É o trabalho que movimenta o fluxo em direção à Serra - e ao Estado, de modo geral. E não poderia ser mais propício. Foi o trabalho e a busca por um local para morar que trouxe para a região os primeiros italianos. A diferença entre os imigrantes de 1875 para os de agora é a cor da pele. Negros, os africanos trazem uma diversidade cultural à região. Muda também a aceitação: muitos ainda os veem com desconfiança. "A população de Caxias é cheia de preconceitos. Ela sempre foi. Durante a colonização, não se podia ter escravos. Nunca se habituou a convivência com os negros. Caxias não tem uma multiculturalidade. Se fossem pessoas brancas não teria essa dimensão de problema", enfatiza Vania. De fato, os questionamentos esbarram no preconceito. Não foi por vontade que os imigrantes senegaleses percorreram mais de 6 mil quilômetros de distância para chegar a Caxias do Sul. Foi por necessidade. Mor ilustra como a carência de uma vida digna os motivou a cruzar o Atlântico.

Por aqui, eles tiveram que modificar muitos hábitos e se acostumar com uma nova realidade, longe de qualquer referência. "Me faltam meus amigos. Me falta minha cultura. Me falta minha família", diz Mor, cuja manta que envolvia seu pescoço na manhã fria parecia protegê-lo também da saudade.

DO SENEGAL AO BRASIL

Com uma área um pouco menor que o estado do Paraná, o Senegal é um país que alcançou a independência apenas em 1960. Poderia ser a Itália, a Inglaterra ou a Alemanha, mas foi a França que colonizou o território ainda no século XIX. A disputa europeia por colônias africanas dissolveu tribos, levou o conflito ao continente e, mesmo que hoje o Senegal esteja em "paz", as marcas das interferências bélicas ou políticas se revelam. "Quase 90% da população é de jovens, porque os velhos morreram, principalmente em conflitos", explica Vania. Além disso, a economia é fraca e não consegue acolher toda a mão de obra do país. A alternativa que resta é migrar.

Quando chegam a Caxias, um dos primeiros locais em que buscam ajuda é no Centro de Atendimento ao Migrante, mantido pelas religiosas scalabrinianas. No Desvio Rizzo, o CAM auxilia e os encaminha para a obtenção de documentação e ajuda os estrangeiros a garantir o mínimo de dignidade. A coordenadora do Centro, irmã Maria do Carmo dos Santos Gonçalves, explica que os primeiros senegaleses chegaram a Caxias do Sul há 4 anos, mas foi a partir da metade de 2012 que o fluxo se massificou. Maria do Carmo - que participa da pesquisa desenvolvida na UCS - acompanhou de perto a chegada de muitos deles. "Até o momento, a gente tem visto que eles conseguem ingressar no mercado de trabalho, mas têm uma vida simples, precisam pagar aluguel e têm um grande compromisso com quem ficou por lá".

Apesar de falarem pouco sobre a forma como ingressam no Brasil, a rota principal se inicia no Equador porque lá não é exigido passaporte, visto ou autorização para circular pelo país. Depois, eles seguem para o Paraguai, Argentina e finalmente o Rio Grande do Sul. Outros preferem cruzar a fronteira com o Acre e depois seguem em direção ao Sul do Brasil. "Olhando o Senegal, a gente vê que eles estão num processo de diáspora. E para entrar no país, muitos acabam sendo vítimas de 'coiotes' que os fazem ingressar no Brasil", explica Maria do Carmo.

FRUTO BRASILEIRO DO VENTRE SENEGALÊS

Como uma mãe canguru, Ndeya Seynabou Samb transita pela praça carregando um bebê e entregando viandas. Pela manhã, ela prepara os pratos para distribuí-los durante o meio-dia à clientela senegalesa. Apesar de simples, o empreendimento vem dando certo e a receita é caseira: os ingredientes são brasileiros, mas a elaboração tenta levar em conta os padrões do país de origem. A culinária de lá tem pescados e mais verduras e legumes, ingredientes caros por aqui. A solução foi dar ao arroz e frango um tempero senegalês.

Ndeya é casada com Amet, é mãe de Arami - a primeira criança nascida em Caxias descendente de senegaleses - e veio ao Brasil há pouco mais de um ano. Chegou a Caxias depois do marido Amet Samb, que vive por aqui há quase dois anos. Ele veio para trabalhar. Arrumou emprego e resolveu trazer a mulher. A falta do Senegal é grande, mas pretendem voltar à África apenas para visitar. Amet atua no setor de pintura da Marcopolo. As expectativas sobre o Brasil se tornaram realidade. Fixou residência na cidade e constituiu a primeira família senegalesa caxiense. Se tornou raridade.

"Eu diria que talvez não seja uma imigração para ficar. Eles querem trabalhar. Na Itália, a migração de africanos foi transitória. Eles ficam porque precisam de trabalho", explica a professora Vania Herédia. Muçulmanos, eles são bastante disciplinados e praticamente não se envolvem em conflitos. Não consomem bebidas alcoólicas e não apresentam aquela malícia tão comum ao brasileiro. Os únicos registros encontrados na polícia dizem respeito a casos de racismo. Eles foram as vítimas.

Como Amet, muitos encontraram postos de trabalhos abertos. Força física, subordinação e respeito à hierarquia ajudam a explicar porque muitos empresários optam pela contratação de senegaleses. Apesar disso, a cidade não estava preparada para recebê-los.

Celulares e cabines telefônicas diminuem a distância entre Caxias e Senegal.
DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS

A Universidade de Caxias do Sul foi o palco da 1º Conferência Municipal sobre Migrações e Refúgios. Promovido pela Fundação de Assistência Social (FAS) e pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Vereadores, o encontro levantou as necessidades dos imigrantes e apontou os rumos de uma discussão nacional prevista para ocorrer no final de maio, em São Paulo."Eles pontuaram principalmente a dificuldade com a língua", relata a presidente da FAS, Marlês Andreazza. Mas a incompreensão da população local do wolof, idioma tribal adotado como língua materna pela maioria deles, não é a única adversidade. A regularização da situação no país e a retirada de documentação para acessar serviços básicos são outros aspectos que foram elencados.

A Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Vereadores já havia se deparado com o problema que envolve a emissão de vistos. É por meio da Polícia Federal que os africanos conseguem retirar o protocolo de refúgio. Com o documento, eles têm a possibilidade de fazer a carteira de trabalho, essencial para garantir a subsistência por aqui. "Apesar de não serem considerados refugiados de guerra, eles acabaram recebendo o protocolo porque funciona como um refúgio econômico", explica a presidente da Comissão, vereadora Denise Pessoa.

Até o ano passado, a Polícia Federal fazia apenas um atendimento de estrangeiro por dia. O resultado era a formação de filas de senegaleses que chegaram a dormir na porta da delegacia em busca da legalização. A situação mudou depois que o Ministério da Justiça incrementou a estrutura do departamento e reforçou a necessidade de agilizar os processos.

A dificuldade de conseguir a legalização é apenas uma diante das provações que precisam passar por aqui. Falta da família, preconceito, condição de vida precária são exemplos da negação de direitos humanos a estrangeiros. Além disso, há o discurso do senso comum que enxerga os senegaleses como estrangeiros que estão aqui para "tirar a riqueza de Caxias". Não obstante, os senegaleses ajudam a mostrar que o mundo vai muito além da praça.

"Eu acho que para nós o processo de migração é um ganho. Nós vamos nos abrir a culturalmente. Entender que tem diferenças, entender um pouco o mundo. O ganho é mais nosso do que deles. Só que as pessoas têm medo disso", argumenta Vania.

O tempo - que provou que o último processo de imigração de mais de cem anos transformou Caxias numa cidade pujante - mostrará que a cidade não é apenas capaz de atrair investimentos, mas também novas culturas.



Revista UCS - É uma publicação mensal da Universidade de Caxias do Sul que tem como objetivo discutir tópicos contemporâneos que respondam aos anseios da comunidade por conhecimento.

O texto acima está publicado na décima primeira edição da Revista UCS que já está sendo distribuída nos campi e núcleos.

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