Iberê Camargo:

o centenário de um

transfigurador do real


Por Vagner Espeiorin | vaespeio@ucs.br

Movimentos rápidos e traços precisos: assim pintava e desenhava Iberê Camargo. A cena costumava atrair a atenção de quem o via diante da tela. Poderia ser uma obra pequena ou um painel, Iberê projetava sua mão e, mesmo com movimentos bruscos, fazia parecer, golpe após golpe, que criar uma imagem era algo fácil. Não era.

"Iberê trabalhando era impactante, como se ele incorporasse outro artista. Chegava a ser agressivo com aquilo que pintava, e ficava insatisfeito com aquilo que fazia", recorda Paulo Ribeiro, escritor e professor do curso de Jornalismo da UCS, que conviveu com Iberê nos últimos anos de vida do pintor.

Até se consagrar como um dos maiores artistas brasileiros do século XX, Iberê teve que desenhar uma carreira cheia de altos e baixos. Ribeiro conheceu de perto os dramas do artista que em 2014 completaria, em novembro, 100 anos. Foi um trabalho para a Veja Rio Grande do Sul - extinta publicação da revista Veja que circulava apenas no Estado - que ele conheceu Iberê. Era 1989, e Paulo propôs à revista um perfil do pintor e gravurista. Para a produção do trabalho, foram dez encontros. Parou por aí. A revista fechou, mas o material coletado por Paulo Ribeiro deu origem ao romance biográfico Iberê, publicado em 1996, dois anos após a morte do protagonista do livro.

"O Iberê foi a personalidade mais forte que eu conheci em toda a minha vida. Ele era essencialmente artista: 24 horas por dia só pensava em arte", lembra Ribeiro.

A memória tem sentido central em sua obra. E, de fato, tudo começou na infância. Ele nasceu em Restinga Seca, na região central do Estado. O pai era ferroviário e, ainda criança, costumava ver de perto as caldeiras da locomotiva queimarem o carvão. O ferro também fazia parte do dia a dia do pequeno.

Não foi por acaso que os tons escuros e fortes, de memórias esfumaçadas, comuns na infância, vão acompanhá-lo até a velhice e serão emblemáticas em seus trabalhos.

"Cada técnica trabalhada por Iberê tinha uma intensidade diferente. Na pintura, a cor sombria e a tinta excessiva, em muitas camadas de óleo, eram predominantes. Na gravura e no desenho, a simplicidade e rapidez do traço, como se tudo fosse possível no gesto da mão", afirma a professora de História da Arte da UCS, Silvana Boone, que já fez também curadoria de exposições com obras do pintor.

Até se transformar em ícone da arte nacional, Iberê aprimorava sua técnica. O processo de aperfeiçoamento se dava em diferentes cenários e cidades. Saiu de Restinga Seca, em 1918, com destino a Santa Maria, onde iniciou os estudos. Não demorou muito para seguir a Porto Alegre, de onde conseguiu uma bolsa de estudos para o Instituto de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Por lá, conheceu importantes artistas - entre eles, Cândido Portinari - e foi em território carioca que Iberê se consagrou e se constituiu como artista. Mas, nesse mesmo cenário, viveu a maior tragédia de sua vida - e que também marcaria profundamente sua obra.

Uma tragédia na vida do artista

Até 1981, os trabalhos de Iberê eram carregados de abstracionismo. Elementos que remetiam à infância, como os carretéis, eram marcas de suas obras. Mas chegou um momento entre o final da década de 1970 e início de 1980, que seus trabalhos experimentaram uma espécie de estagnação criativa.

"Ele começou dentro do figurativo. Depois, passou a integrar o abstracionismo e, nessa fase, foi o maior artista brasileiro. Os carretéis (brinquedos que remetiam à infância do pintor) o fazem voltar à figuração, e ele acaba produzindo um figurativo abstrato. Mas a partir disso, ele começa a se repetir, a patinar", analisa Ribeiro.

Um fato porém, iria fazer com que a vida de Iberê rodopiasse. Era 5 de dezembro, quando saiu pelo bairro do Botafogo, no Rio de Janeiro, para comprar cartões de Natal. No percurso, Iberê observa um homem que chacoalhava com força uma mulher.

"O Iberê, com aquela personalidade muito forte, se comoveu com a cena. Ele atravessou a rua e disse ao agressor: 'você sabia que não se bate em mulher?'", narra Ribeiro. Naquele instante, o homem se volta contra Iberê e parte para cima dele. Caído no chão, o pintor pega o revólver que guardava numa bolsa - à época, ele acabara de concluir um curso de tiro - e acerta o agressor.

A morte funcionou como uma bomba atômica na vida de Iberê. "Ele dizia que era a Hiroshima dele", comenta Ribeiro. Após ficar preso e ser absolvido por legítima defesa, Iberê volta ao Rio Grande do Sul, um ano depois, em 1982. E inicia uma das fases mais intensas de suas obras. Não por acaso, a mais sombria e fantasmagórica também.

No final daquela década, observando as mulheres andando sobre as bicicletas no Parque da Redenção, na capital gaúcha, ele cria a série "Ciclistas". Uma das mais marcantes e que reforça a técnica de camadas de tintas sobrepostas. A figura humana - por vezes, desproporcional - está em primeiro plano, mas a produção guarda as influências do abstracionismo.

"A obra do Iberê Camargo foi marcada principalmente pela expressividade matérica da pintura, pelas temáticas pontuadas por carretéis, ciclistas, idiotas e suas fantasmagorias, ao longo da carreira de mais de 60 anos", reforça a professora Silvana.

Mas há ainda os autorretratos. Com seu traço característico, Iberê criou ao longo do tempo diferentes representações de si mesmo. "Seus autorretratos, durante toda a sua trajetória, são vibrantes em diferentes períodos. E em cada um, a representação de si é motivada pela ideia de representação que tinha do ser humano como um todo", reforça a professora.

Assim como a autorrepresentação se transformou com o tempo, a produção artística de Iberê se modificou, se reciclou. Hoje, há 100 anos de seu nascimento e há 20 de sua morte, seus trabalhos são constantemente revisitados e redescobertos. À beira do Guaíba, a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, guarda gravuras, pinturas e demais criações artísticas que se abrem para o mundo.

Já no final da vida, Iberê foi vítima de um câncer no pulmão que o fez imergir numa das fases mais conscientes de sua obra. "Solidão, de 1994, traz a essência da consciência do seu passado e do seu presente como artista e como ser humano. Traduz algo que é intraduzível com palavras, mas está ali, na tinta sobre a tela", destaca Silvana.

Solidão era imensa - tinha quatro metros de tela - e dava um desfecho com um título sagaz ao conjunto de sua carreira. Num país tropical, Iberê foi um solitário no cenário nacional: pintou com tons escuros e fortes. E pintou e desenhou memórias crepusculares de uma região escondida no Rio Grande do Sul. Transfigurou o real. Como um detalhista, acreditava que o acabamento de uma obra era indispensável. Um dedo de um de seus personagens, que estivesse descompassado com o restante da pintura, poderia comprometer a tela. Ficava sobre aquele ponto até 'consertá-lo' por completo. Era um perfeccionista. Como disse certa vez: "no fundo, um quadro para mim é um gesto, é o último gesto". Seus gestos chegaram perto da perfeição: desejo de toda a arte.



Revista UCS - É uma publicação mensal da Universidade de Caxias do Sul que tem como objetivo discutir tópicos contemporâneos que respondam aos anseios da comunidade por conhecimento.

O texto acima está publicado na décima primeira edição da Revista UCS que já está sendo distribuída nos campi e núcleos.

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