Rebeldes com

causas


DE DIFÍCIL COMPREENSÃO, AS RAZÕES DOS PROTESTOS DE JUNHO DE 2013 REVERBERAM UM ANO APÓS A MOBILIZAÇÃO DE MILHARES DE PESSOAS

Por PAULA SPERB | psperb@ucs.br

O sol já havia cedido seu lugar para a noite mais longa do ano quando 35 mil pessoas se reuniram no Centro de Caxias do Sul. Um dos momentos mais marcantes da história recente da cidade aconteceu em 21 de junho de 2013, durante o solstício de inverno. Naquele mês, centenas de manifestações ocorreram em todo o Brasil. Os 35 mil que protestaram em Caxias equivalem a 8% da população local. Proporcionalmente, os caxienses eram mais numerosos que os paulistas. Na véspera, 100 mil pessoas protestaram em São Paulo, pouco menos do que 1% da população daquela cidade. Somando todos os protestos de junho passado, estima-se que 2 milhões de brasileiros tenham saído de casa para clamar por mudanças. Um ano depois, ainda se procura entender o que mobilizou tantos brasileiros, que não estavam organizados como no caso de uma greve, por exemplo. "Em um primeiro momento, parecia tudo diluído", lembra Carlos Roberto Winckler, mestre em Sociologia e professor da UCS. "As manifestações de junho foram um desaguadouro do que já vinha ocorrendo no mínimo há dois ou três anos, em vários locais. Elas estão ligadas principalmente ao transporte público", relembra Winkler sobre o aumento da passagem de ônibus em diversas cidades, o estopim dos protestos.

Entretanto, as reivindicações não foram apenas por um preço justo ou passagens gratuitas de ônibus. Movimentos gay, de igualdade de gênero e ambientalistas também aderiram aos protestos. Nesses casos, os motivos estão mais claros. O que intriga a muitos é justamente a participação de jovens sem ligação a nenhuma causa específica ou partido. "Havia um componente mais popular: jovens que ascenderam socialmente nos últimos anos a partir das políticas sociais como Bolsa Família, aumento do salário mínimo, oportunidade de emprego e, consequentemente, aumento do consumo", opina Winkler. Para o professor, a ascensão econômica também elevou o nível de exigência sobre os serviços públicos. "Houve uma relativa melhora social, mas as pessoas querem mais", diz Winkler, lembrando que, além da saúde e segurança, a educação de qualidade também foi uma bandeira.

REIVINDICAÇÕES MULTIFACETADAS

Esferas vermelhas e redondas adornavam os narizes de muitos manifestantes que aguardavam o início da caminhada na rua Marquês do Herval. Por volta das 18:00, palhaços, mascarados como Guy Fawkes - soldado rebelde inglês, morto em 1606, que se popularizou na versão anarquista das histórias em quadrinhos - e encasacados (era a primeira noite de inverno, afinal) se deslocaram pela rua Pinheiro Machado em direção ao bairro São Pelegrino. De lá, retornaram pela Sinimbu, quando o grupo se dividiu entre os que foram à prefeitura, os que voltaram à praça Dante Alighieri e os que foram embora com receio de alguma ação violenta. "Ninguém sabia muito bem o que esperar. No Facebook tinha muita gente confirmada no evento, mas no fim acabou tendo mais gente na rua do que no Facebook", conta Andressa Marques, 18 anos, estudante de Serviço Social da UCS e uma das coordenadoras do Diretório Central de Estudantes (DCE) da Universidade. A referência à rede social é obrigatória porque o encontro foi combinado pela internet, com 27 mil confirmações virtuais.

No mundo real, 35 mil pessoas compareceram. "Apesar de as manifestações não terem foco, algumas pautas que levaram o pessoal para a rua foram justas. Não tinha por que eu não ir para a luta junto. A intenção era boa", diz Andressa sobre sua razão para participar da marcha. Milhares de pessoas chegaram ao protesto através da divulgação no Facebook. E outras tantas se informaram sobre o desenrolar da manifestação através das redes, e não por meio da imprensa tradicional. Breno Dallas, de 28 anos, formado em Filosofia pela UCS e produtor cultural, participou do protesto para realizar uma cobertura multimídia alternativa divulgada no Facebook do grupo Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação). "A maior parte das pessoas presentes não sabia o que estava fazendo lá, parecia mais uma festa, uma comemoração. E não era. Estavam todos felizes cantando o hino do Brasil e do Rio Grande do Sul. Eu não conseguia sorrir e ver graça em nada daquilo. Parecia que estava diante de um bando de autômatos", relembra Breno. Para ele, faltou consciência política aos atos. "A reivindicação genérica do `ser contra a corrupção" não respondia mais ao que realmente se necessitava", analisa.

Com uma perspectiva mais otimista sobre os atos de junho, Ramone Mincato, doutora em Ciência Política e professora da UCS, percebe que "havia o receio de que o protesto fosse instrumentalizado pelos partidos". A participação de órgãos políticos seria legítima, mas as próprias pessoas que foram às ruas rejeitaram a organização partidária, conforme a professora. Segundo ela, "também porque boa parte da população não se sente representada pelos partidos.

Não foi o movimento de um partido, foi cívico. O indivíduo não se sente representado. Daí ele se autorrepresenta com a sua demanda", contextualiza Ramone.

"Não mudei quanto à concepção que eu tinha há um ano sobre o movimento. Considero um ato de cidadania justamente por não ter um líder ou organização. O foco da manifestação foi o sistema político brasileiro, que é fechado e não abre para as demandas da sociedade", explica a professora, que ressalta que o protesto não era contra o governo em si, mas contra a forma tradicional de se fazer política.

Do asfalto, um jovem acena para a sacada de um alto prédio no Centro de Caxias. A luz acesa indica que lá em cima alguém observa a passeata. De baixo surge o convite: "vem pra rua!". Por onde a marcha passava, palavras de ordem eram entoadas acompanhadas do som de apitos - exceto em frente ao Hospital Pompéia. Do alto dos edifícios ou ao lado dos manifestantes, era possível ler faixas com dizeres como "todo poder emana do povo" e "povo calado é povo roubado".

Entre tantas reivindicações, pedia-se inclusive "mais Brasil, menos impostos". A maior parte dos manifestantes nasceu depois da ditadura militar, portanto em pleno regime democrático. "Lembro que desde os 15 anos eu escuto que os jovens não se mobilizavam por uma causa, o que é uma verdade. Mas há muito tempo não se via uma mobilização tão grande como a de junho. Tiveram bons resultados, sim. A gente sente que tem uma necessidade da juventude participar mais. Ficou uma grande vontade do pessoal de contribuir com o país", defende a estudante Andressa, que participa de movimentos juvenis organizados. "O que eu acho mais fantástico é que tínhamos um jovem apolítico e agora temos um antipolítico, ou seja, ele faz política contra o modo tradicional de fazer política, luta pelo que é correto", analisa a professora Ramone.

Para ela, "a sociedade quer mais, quer participar e controlar as decisões. A população clama por mais participação". Justamente por isso a Copa do Mundo virou um alvo em potencial a um ano da competição mundial. A sociedade se sentiu excluída da organização do evento por "não ter sido consultada sobre como os recursos deveriam ser utilizados. Provavelmente as pessoas decidiriam por outro investimento", reflete a professora.


VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL

Se fosse uma pessoa, o semáforo da rua Alfredo Chaves com a rua Dom José Barea estaria falando sozinho. Segundos com a luz vermelha intercalada pela amarela - mais rápida -, seguida da verde, trabalhavam em vão. Não circulavam carros por ali, apenas os manifestantes tomavam a rua, outros ocupavam o pátio em frente à prefeitura. Dezenas chegaram a deitar no asfalto pedindo paz. Um garoto, sem adeptos, deitou sozinho segurando uma flor. Uma cena digna de protesto contra a Guerra do Vietnã, mas que terminou com atos violentos, por parte de vândalos e também da polícia. Em um vídeo entre dezenas de registros amadores do protesto que estão disponíveis no YouTube, um rapaz de blusão está caminhando quando é atingido por um golpe de cassetete na barriga. A agressão gratuita partiu de um policial. Em outros vídeos, percebe- -se claramente quando se soltam rojões entre os manifestantes, o que gerou repressão policial com bombas de gás lacrimogênio, balas de borracha e cavalaria. "A polícia atacou a todos quando viu necessidade, atingindo inclusive os que estavam ali por uma presença não politizada. É sempre um tanto covarde este tipo de posicionamento, de provocar a dispersão através de bombas de efeito moral e de gás. Mas há outra maneira" Não sei. A imprensa tradicional, como de costume, tachou de 'baderneiros' os que atrapalharam a 'passeata', 'bonita do jeito que estava'", relata Breno. A estudante Andressa também foi testemunha de atos violentos: "no final, indo para casa de ônibus, vi pessoas correndo e os policias atirando bombas de gás. Lembro também que algumas pessoas depredaram um banco e banquinhas (de revista)". Em aproximadamente 4 horas de manifestação, o que mais marcou Breno foram os momentos finais, "a correria, junto com aquela multidão, quando as bombas de gás explodiram na prefeitura. Eu estava com uma jaqueta que impedia tapar o nariz, o que irritou bastante minhas narinas".

POR MAIS PARTICIPAÇÃO

A violência policial foi uma constante durante os protestos de junho, assim como as críticas à mídia, que iniciou sua cobertura destacando os atos de vandalismo e não as reivindicações. Tanto para Winkler como para Ramone, a mídia não desempenhou seu papel de mediar discussões importantes como a reforma política, que agora está praticamente esquecida na esfera pública. Mesmo assim, os professores da UCS concordam que os protestos deixaram avanços. "Ficou um alerta de que as pessoas querem ter mais políticas sociais, mais presença do Estado, mas de modo que as pessoas tenham o direito a ter sua opinião", destaca Winkler. Para Ramone, o desejo de uma maior participação popular também é um fruto colhido: "iniciamos uma fase importante da política brasileira. Junho foi o marco desse processo".



Revista UCS - É uma publicação mensal da Universidade de Caxias do Sul que tem como objetivo discutir tópicos contemporâneos que respondam aos anseios da comunidade por conhecimento.

O texto acima está publicado na décima segunda edição da Revista UCS que já está sendo distribuída nos campi e núcleos.

Veja outras matérias da Revista.