Por VAGNER ESPEIORIN | vaespeio@ucs.br
Março de 1964 se tornou o destino final de um caminho que começou a ser trilhado ainda em 1889, com a Proclamação da República. Em entrevista, a professora de História do Brasil na UCS, Eliana Gasparini Xerri, afirma que o desejo de tomar o poder pelos militares já havia despontado durante o governo de Getúlio Vargas e que esse objetivo só se concretizou com a deposição de João Goulart, o Jango. Depois de uma sequência de governos democráticos, o país passava a viver uma ditadura que, no período mais duro, chegou a ser chamado de "Anos de Chumbo".
Golpe Militar ou Golpe Civil-Militar: qual o correto?
Quando se fala em Golpe Civil-Militar dá uma conotação. Se falar Golpe Militar traz outra. Como historiadora, eu prefiro dar caminhos para que os alunos leiam e optem pela denominação que será
dada. Alguém que foi favorável aos 21 anos de Ditadura vai chamar de Revolução, "a gloriosa Revolução de 1964". Para essas pessoas, é gloriosa e vitoriosa porque evitou o comunismo no Brasil. Eles defendem que pairava uma ameaça comunista no país e que era necessário evitar que isso se proliferasse na sociedade brasileira. Para outros, que viveram as amarguras do perigo e que chegaram a ser torturadas, elas vão chamar de Golpe.
E havia uma ameaça comunista no Brasil de
1964?
Havia partidos comunistas e pessoas
que simpatizavam com a ideologia.
Mas não tinha ameaça de uma Revolução
Comunista ao modelo da China, ao modelo de Cuba. É importante frisar
que o presidente João Goulart (Jango),
que foi deposto, era um estancieiro, um
latifundiário. Estava num partido trabalhista,
mas dizer que ele era um comunista
é um pouco de exagero.
Então, por que os militares acabaram dando
o Golpe?
Se buscarmos mais de 30 anos antes,
em 1930, quando Getúlio Vargas
chega ao poder, já havia o interesse
muito forte de setores militares de assumirem a presidência.
E isso vai remeter
à proclamação que,
em 1889, deu poder
a um grupo de militares.
Logo na terceira
gestão republicana,
porém, esse grupo é
substituído por latifundiários.
Entre 1910 a
1930, vamos ter uma
série de revoltas, inclusive
patrocinadas por
membros das Forças
Armadas, e que pregavam
que era necessário
a República voltar
aos militares para ser
ética e para acabar
com a corrupção. Há
referências históricas
que afirmam que Getúlio
Vargas acabou
afastando essa possibilidade.
Mas o próprio Vargas não
tinha um pé no militarismo?
Vargas estudou na
escola militar, mas era
um latifundiário que
se formou em Direito.
Ele tinha uma visão de
mundo diferenciada
numa época em que
poucos eram alfabetizados.
E quando os membros
das Forças Armadas passaram
a querer voltar ao
poder?
Entre 1946 a 1964,
há a primeira experiência
de eleições no
Brasil. E vamos ter
uma sequência de
presidentes com Eurico Gaspar Dutra,
o retorno de Getúlio Vargas, Café Filho,
Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros.
Todos eles escolhidos de forma
democrática. Em 1961, Jânio Quadros,
mesmo tendo ficado apenas sete meses
como presidente, desenvolveu uma
política antagônica. Ele acabou tomando
medidas moralizantes, como o de
proibir as corridas de cavalo em dias de
semana e o biquíni de duas peças. Em
nível político, ele tomou medidas contraditórias. Homenageou Che Guevara,
convidou o líder revolucionário cubano
para vir ao Brasil e o condecorou com a
Ordem do Cruzeiro do Sul. Só que para
chegar ao poder, Jânio foi apoiado pela
direita.
Por que o Jânio renuncia?
Ele deu dez razões em sua biografia
e algumas bem esdrúxulas, como
por exemplo, a de que ele não gostava
da comida do Palácio do Planalto. Na
verdade, ele teve uma carreira política
muito rápida e assumiu posições contraditórias.
Ele disse anos depois que
o objetivo principal não era renunciar,
mas ameaçar uma renúncia para que
a população pedisse que ele permanecesse.
Com as medidas antipopulares
e com a condecoração do Che, ele tinha
perdido o apoio do povo e da UDN,
que era o partido conservador de sustentação.
Jânio estava sem base e ninguém
pediu para ele ficar. O João Goulart,
o Jango, era seu vice-presidente.
Como um estancieiro, trazia a memória
do Getúlio Vargas, de quem tinha sido
ministro do Trabalho. Ele assume a presidência,
mas com poderes limitados.
De 1961 a 1963, há o parlamentarismo.
Quem governa é o parlamento sob as
ordens do militares. Em setembro de
1963, ocorre um plebiscito e a população
acaba optando pelo presidencialismo.
Mas como era possível os militares atuarem
no Conselho Parlamentar se os deputados foram
eleitos pelo voto popular?
Os militares não eram parlamentares,
mas agiam junto à Câmara. Na
época, o plebiscito foi tão marcante
que nas cédulas as pessoas, além de
marcarem a opção presidencialismo,
escreviam ?com Jango?. Isso deu um
poder muito grande ao estancieiro. Em
1963, Jango assume e chama muitos
dos intelectuais da época para compor
seu governo. Esse grupo de pessoas
elabora um plano de reforma de bases,
que é divulgado à população em 13 de
março de 1964, num comício na Central
do Brasil. Era um plano audacioso para
a época. Previa a reforma cambial, a
reforma administrativa, reforma urbana
e a mais contundente delas: a reforma
agrária. As terras que seriam utilizadas
deveriam ter mais de 180 hectares,
improdutivas, e que poderiam ser de
particulares, da Igreja e das Forças Armadas.
Por que um estancieiro como Jango acabou
propondo uma reforma agrária tão forte?
Na prática, foi o conjunto de intelectuais
que propôs. Mas uma reforma
agrária séria era um desejo antigo da
população. Jango tinha um visão mais
social. Ele fez o anúncio num comício
que durou horas e para cerca de 200
mil pessoas. Há interpretações de que
ele foi ingênuo. Outros afirmaram que
ele foi contestador e até inconsequente,
mesmo sabendo de toda a vigilância
sobre o seu governo e da tentativa dos
militares em retornar ao poder.
Mas o Jango se tivesse utilizado a base militar
que ele tinha, poderia ter evitado?
Depende. Ele afirmou que não resistiu
para evitar o derramamento de
sangue. Tem algo que ainda precisa ser
investigado, que é porque a resistência
interna na sociedade brasileira não
ocorreu de imediato. Quando acontece
o golpe no Chile, o presidente Salvador
Allende cai durante o embate e a população
resiste imediatamente ao general
Augusto Pinochet. No Brasil, há uma
demora para isso acontecer. Foram semanas.
As pessoas não se articularam
de imediato. Hoje, se tem notícias de
mais de cinquenta grupos de resistência.
Mas veio depois. Ainda nos faltam
elementos que possibilitem compreender
por que não houve resistência. Por
muito anos, a gente falou em golpe militar.
Atualmente, o mais correto é dizer
o Golpe Civil-Militar, porque foi apoiado por setores da população. Se durou
21 anos, não foi apenas pela força das
armas, pela tortura, pela violação dos
direitos humanos, foi por que teve importância
para a sociedade civil, seja
por ignorância ou por acreditar mesmo
que aquele governo era bom.
As pessoas tinham noção que estavam passando
por uma ditadura?
Talvez, muitos não soubessem e outros
não quisessem saber. Mas os que
sabiam tinham medo do que poderia
acontecer. Acredito que foi por falta de
comunicação, pela surpresa dos acontecimentos
e por medo também. É importante
lembrar que de 1968 a 1978,
a gente teve o AI5 (Ato Institucional nº
5), que é o período duro da ditadura.
Durante a vigência dele, as pessoas
até sabiam o que estava acontecendo,
mas não se manifestavam, porque se
você estivesse em três pessoas na rua
já era considerado um grupo suspeito.
Esse medo fez com que a população
se calasse. De outro lado, a gente tem
uma produção de mídia em que o país
parecia maravilhoso, com novela, futebol,
Copa de 1970.
"AS PESSOAS NÃO SE ARTICULARAM DE IMEDIATO. HOJE, SE TEM NOTÍCIAS DE MAIS DE CINQUENTA GRUPOS DE RESISTÊNCIA. MAS VEIO DEPOIS. AINDA NOS FALTAM ELEMENTOS QUE POSSIBILITEM COMPREENDER POR QUE NÃO HOUVE RESISTÊNCIA" |
Do ponto de vista do poder, como foram os
governos militares?
O governo Castelo Branco, que é o
primeiro deles, foi arrumando o caminho
com os Atos Institucionais. Inicialmente,
se acreditava que três ou quatro
atos seriam suficientes. Não foram.
Quando Artur Costa e Silva o substitui,
a resistência é grande e é preciso censurar.
Ele extingue o direito de defesa
aos presos políticos e acaba com o Habeas
Corpus. O Emílio Garrastazu Médici
instaura o período mais linha dura.
E só não foi mais difícil porque, em
1973, tem a crise do petróleo e os militares
perdem o apoio econômico dos
Estados Unidos. Depois, com o Ernesto
Geisel, há muita pressão interna e externa
motivada pelos exilados políticos
que denunciam junto à imprensa internacional
o que está acontecendo no
Brasil. Há aí o relaxamento da Ditadura.
Não foi menos cruel. Ele apenas começou
a relaxar. O Geisel proíbe a tortura,
mas é desobedecido pelos militares.
Esse momento de descumprimento de
ordens mostra bem a desconexão e as
rachaduras dos militares. Vai se encaminhar
para o Governo Figueredo que
vai dar início ao período de distensão:
lenta, gradual e segura.
Revista UCS - É uma publicação mensal da Universidade de Caxias do Sul que tem como objetivo discutir tópicos contemporâneos que respondam aos anseios da comunidade por conhecimento.
O texto acima está publicado na décima terceira edição da Revista UCS que já está sendo distribuída nos campi e núcleos.