Compasso que varia de pessoa para pessoa

Para alguns, acordar cedo é sinônimo de vitalidade e energia. Para outros, é como começar o dia com o pé esquerdo. Entenda como a cronobiologia explica porque uns sofrem mais que outros com a mudança de horário

ANA LAURA PARAGINSKI | alparaginski@ucs.br
Fotos de Claudia Velho

O ritmo circadiano é a maneira pela qual nosso organismo se adapta à duração do período claro (dia) e do período escuro (noite), de forma a sincronizar as funções fisiológicas com a duração de um dia (aproximadamente 24 horas). Por exemplo, o ciclo sono-vigília se organiza dentro do período das 24 horas de duração do dia. A oscilação da nossa temperatura corporal também obedece a um ritmo em que ela diminui de madrugada, e, perto da hora de acordar, volta a subir, e isso se repete todos os dias. Por isso, diz-se que a temperatura corporal apresenta um ritmo circadiano. "Essa adaptação se dá pela expressão de diferentes genes, os chamados genes do relógio. Nós temos um oscilador central localizado no nosso cérebro e que vai regular a expressão desses genes nos seus neurônios de acordo com a presença ou ausência da luz. Esse é o relógio biológico principal, chamado Núcleo Supraquiasmático (NSQ)", relata a professora do curso de Biologia da UCS e PhD em Cronobiologia Humana, Giovana Dantas de Araújo. Então, quando falam em relógio biológico, você pode estar ciente de que ele realmente existe e fica dentro da nossa cabeça. "A oscilação do núcleo supraquiasmático comanda oscilações em relógios secundários existentes em outros tecidos que também vão modificar a expressão de seus genes por ordem desse relógio central. Juntos, eles formam um sistema temporizador. A própria expressão gênica no núcleo também obedece a um ritmo circadiano, com genes que são expressos durante o dia e genes que são expressos durante a noite", ressalta Giovana.

Melatonina: o hormônio do escurecer

Ao escurecer, a ausência de luz provoca modificação nas células da retina implicadas na percepção da variação na luminosidade e não da visão. Estas disparam sinais que são enviados para ativar o núcleo supraquiasmático. Este, por sua vez, faz com que o gânglio cervical superior libere o neurotransmissor noradrenalina que estimula a glândula pineal a produzir e secretar a melatonina a partir do aminoácido triptofano. "A melatonina é o hormônio responsável por sinalizar o início da noite e sua duração e, assim, iniciando uma cascata de eventos fisiológicos justamente para preparar o organismo para o repouso", salienta a professora.

A principal enzima envolvida na síntese da melatonina, a N-acetiltransferase (NAT), é estimulada pela escuridão e a presença de luz faz com que ela seja destruída. Então, a própria luz, ou a sua ausência, é o sinal para começar e terminar o processo. Além disso, existe uma relação direta entre o aumento da disponibilidade de noradrenalina e o pico noturno de melatonina. Portanto, a secreção de melatonina também apresenta um ritmo diário. Sendo assim, o ritmo está presente em todos os seres humanos, inclusive nas pessoas cegas. Na verdade, todos os organismos apresentam um ritmo biológico.

"Como é possível notar, o nosso relógio biológico se sincroniza com a duração do dia e isso leva à sincronização de várias outras funções. Então, a presença da luz do dia é a principal pista ambiental que nós temos para acertar o relógio biológico, mas outras pistas também são importantes, desde que haja regularidade, ou seja, ocorram sempre em torno do mesmo horário. Estas são pistas sociais, como a hora do início do trabalho e a hora das principais refeições", comenta Giovana.

Pesquisas mostram que se as células NSQ são cultivadas in vitro, elas são capazes de manter seu próprio ritmo na ausência de sinais externos. Isso significa que o ritmo é gerado endogenamente em cada pessoa. Se cada pessoa gera seu próprio ritmo, existem diferenças de uma pessoa para outra e isso pode acarretar consequências que vão desde a adaptação mais rápida ou mais demorada ao início do horário de verão até a maior presença de sintomas depressivos em pessoas com determinado perfil cronobiológico.

Você é matutino ou vespertino?

Todo mundo conhece alguém que acorda super cedo com toda a energia. Chega no trabalho, agiliza as atividades e cumprimenta a todos com muita euforia. Mas também é conhecida aquela pessoa que tem dificuldade para acordar cedo, chega com "cara de velório", mas é a última a sair do trabalho, além de estar sempre disposta para aquele happy hour no final do dia e vai dormir depois da meia noite. Para essa pessoa, horário de verão é um horror. A essa diferença individual que diz respeito às variações na expressão rítmica dos padrões biológicos e comportamentos chamamos de cronotipo.

Embora sejamos a maioria do tipo indiferente, ou seja, "nem tão cedo e nem tão tarde", todos podemos reconhecer as características de um ou de outro tipo em nós mesmos. Portanto, conseguimos nos adaptar às rotinas de trabalho e estudo mais convencionais: acordar às 7h para estar no trabalho às 8h ou 8h30; realizar todas as nossas atividades até às 19h ou 19h30 para às 23h estar dormindo. Porém, existem pessoas que não são assim: ou são mais matutinas ou mais verpertinas, como nos exemplos do parágrafo anterior. Portanto, não convém ficar julgando as pessoas ou chamando-as de preguiçosas. Isso é um tipo biológico e está presente em muitas pessoas que pertencem ao nosso convívio diário.

A distribuição dos cronotipos na população é genética, mas o ambiente influencia e, além disso, a preferência matunidade-vespertinidade muda com a idade e com o sexo. Bebês são mais matutinos. Na adolescência, tornamo-nos mais vespertinos. O ápice da vespertinidade ocorre aos 19 anos para as mulheres e aos 21 para os homens. Depois, a maioria das pessoas passa a se aproximar da matutinidade, primeiro as mulheres, e os homens depois, aos 50. Então, no decorrer da vida, a maioria é indiferente, mas numa idade mais avançada vamos nos tornando mais matutinos.

O jet lag social

Para pessoas mais matutinas ou mais vespertinas, os horários convencionais podem ser conflitantes com o tempo interno e tanto sua produtividade no trabalho, como sua qualidade de vida podem ficar comprometidas. Essa diferença entre o horário convencional e o horário ideal de cada pessoa é chamada de jet lag social porque, à semelhança do que acontece quando se viaja e se troca o fuso horário, o indivíduo fica dessincronizado.

A obrigação de acordar e dormir em horários biologicamente inadequados cria um conflito entre o sincronizador social (horário de trabalho/estudo) e o ritmo interno do indivíduo. Porém, a adaptação das funções fisiológicas, em virtude das mudanças ambientais sinalizadas pelo núcleo supraquiasmático, não ocorre de maneira adequada porque as variáveis fisiológicas se adaptam com a mesma velocidade ao horário: o NSQ "manda", mas algumas funções ?não obedecem?, e a própria expressão dos genes dentro do núcleo também fica descompassada.

a diferença entre o horário convencional e o horário ideal de cada pessoa é chamada de jet lag social

Para a professora de Fisiologia da UCS, Claudia Adriana Bruscatto, o sono tem os objetivos de organizar as informações coletadas durante o dia e restaurar as fontes de energia. "Com as alterações do horário de verão, tanto para adiantar como para atrasar, o nosso relógio biológico é alterado e isso leva a resultados como sonolência durante o dia, irritabilidade, déficit de atenção, entre outros", explica Claudia. Para Giovana, o principal efeito dessas alterações, especialmente no ambiente de trabalho, é o impacto sobre a capacidade mental das pessoas, afetando memória e cognição, o que gera uma maior possibilidade de se cometer erros ou de ocasionar acidentes. "A exposição à luz artificial por longo tempo, como ocorrem em fábricas, hospitais, shoppings centers e outros locais, onde os trabalhadores não têm acesso à luz natural, é outro fator que pode acarretar em prejuízo para o ritmo biológico, bem como para o humor", ressalta.

Existem muitas evidências de que a sonolência e a fadiga causadas por desalinhamento circadiano e débito de sono têm sido as principais causas de acidentes graves e tragédias em indústrias e transporte e também a causa de erros médicos cometidos por plantonistas e residentes. O polimorfismo de alguns genes do relógio também pode predispor ao comprometimento cognitivo associado à ruptura de ritmo do ciclo sono-vigília, como ao observado na privação de sono durante a noite, mostrando que existe um componente genético que leva a diferenças individuais.

A influência da luz

As principais fontes de luz artificial as quais estamos expostos são as lâmpadas fluorescentes, telas de computador, televisão e aparelhos celulares que emitem na faixa do comprimento de onda do azul, a mais comum atualmente. Essa exposição à luz artificial por um longo período, principalmente a partir do horário em que já escureceu, é prejudicial tanto para a regulação do ritmo biológico quanto para o humor, já que essa mesma via também se comunica com o sistema límbico, uma região cerebral importante para a regulação do humor. As células da retina que enviam informação através dessa via são extremamente sensíveis ao comprimento de onda do azul, enquanto são muito menos sensíveis para o comprimento na faixa do vermelho.

A compreensão da cronobiologia é fundamental para a organização do trabalho nessa sociedade que vive as 24 horas do dia. A adequação ambiental dos locais de trabalho também é muito importante, já que a luminosidade é o fator que mais fortemente influencia o ritmo biológico. Entender o impacto dos ritmos biológicos, principalmente do ritmo circadiano, a tipologia cronotípica sobre o rendimento de cada indivíduo, a cognição e o humor pode nos auxiliar a escolher os horários de trabalho de forma personalizada para que cada colaborador possa dar o seu melhor sem prejudicar sua qualidade de vida. Isso facilitaria as relações nos ambientes de trabalho, tornaria essas pessoas mais produtivas, mais satisfeitas consigo mesmas e mais comprometidas.


Não sofra tanto com a mudança de horário. Siga estas dicas:

"Comece a modificar seus hábitos de dormir uns 2 ou 3 dias antes da mudança do horário. Procure deitar na cama um pouco mais cedo, isso faz com que o organismo vá se acalmando aos poucos. Praticar exercícios físicos melhora a qualidade do sono, porém nos primeiros dias, devem-se evitar exercícios intensos ao final do dia, pois com a prática nesse horário, aumenta a temperatura corporal e altera a produção de alguns hormônios, como o cortisol e isso dificulta ainda mais o 'pegar no sono' nos primeiros dias".
Prof. Claudia Adriana Bruscatto

"A forma como o ambiente é iluminado é mais importante que a quantidade de luz . A cor da luz pode ter um efeito devastador, principalmente em longo prazo. A troca das lâmpadas fluorescentes por aquelas que melhor imitam a luz natural é recomendada. Mesmo assim, o ideal é se expor o menos possível à luz após o anoitecer, para não prejudicar a produção de melatonina e não dessincronizar os relógios biológicos".
Prof. Giovana Dantas de Araújo



Revista UCS - É uma publicação bimestral da Universidade de Caxias do Sul que tem como objetivo discutir tópicos contemporâneos que respondam aos anseios da comunidade por conhecimento.

O texto acima está publicado na décima quinta edição da Revista UCS que já está sendo distribuída nos campi e núcleos.

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