VAGNER ESPEIORIN - vaespeio@ucs.br
Fotos: Aldo Toniazzo e Ary Trentin/ECIRS/IMHC
O ano de 1975 foi marcado por momentos difíceis na política brasileira. Eram tempos de ditadura, anos de chumbo. O cenário na Serra gaúcha, porém, não flertava com o sentimento de tensão em escala nacional. Por aqui, era época de festa, de celebração do centenário da imigração italiana e, também, da ascensão de um novo olhar sobre as tradições trazidas pelos responsáveis pela ocupação territorial promovida no final do século XIX. Foi um período divisor de águas.
"A noção de italianidade foi construída. Três agentes ajudaram a fomentar esse sentimento na década de 1970: os intelectuais, a Igreja e os empresários. Eles viriam a ter papel fundamental na manutenção do mito do italiano, que não estava lá no início", sentencia a professora Vania Beatriz Merlotti Herédia, do Centro de Ciências Humanas e da Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Ao se completarem 140 anos da chegada dos primeiros italianos, a fala da pesquisadora, reconhecida pelos trabalhos que envolvem a imigração e o processo de industrialização local, é emblemática. Em um de seus estudos, ela buscou mapear a historiografia regional em torno de uma linha conceitual para demonstrar as transformações sobre o modo de ver o italiano. Dentre as conclusões obtidas está a associação do sucesso do processo de colonização a um elemento típico do capital.
"Criou-se um mito em relação ao italiano, porque a região teve todos os fatores para que o desenvolvimento desse certo. A começar pela propriedade privada na família. O italiano não estava abandonado. Ele tem uma referência: o lugar em que ele mora", frisa a pesquisadora.
Marcas antropológicasApesar dos elementos sociológico e econômico terem peso considerável sobre o processo migratório, foram as marcas antropológicas que guiaram as primeiras pesquisas em torno das comunidades italianas. Os usos e costumes deixados pelos imigrantes constituíram-se em objetos de análise do Projeto ECIRS, criado em 1974 para o estudo da cultura da imigração e mantido até hoje pela UCS.
À época, a intenção era documentar os hábitos que ficaram marcados no cotidiano de pessoas que habitavam especialmente a zona rural. O resultado está disponível para acesso público. As fotografias que ilustram essa reportagem são uma amostra (pequena, por sinal) de um acervo bem mais amplo, que, além das populações, capta os cenários da região colonial italiana.
"Esses estudos têm papel importante. Eles ajudaram a mudar o conceito de colono na região, que estava vinculado à ideia do imigrante. Até então, o olhar para o imigrante não tinha tanto valor, não tinha esse elemento identitário", explica Vania.
Triunfo do minifúndioSe para o Brasil o filme O Quatrilho ficou marcado como a obra representativa da retomada do cinema nacional, para a Serra gaúcha ele ilustra parte considerável da história da região. No livro escrito pelo professor José Clemente Pozenato - e que deu origem à obra cinematográfica -, há um traço importante para a contextualização da mitologia da imigração: a demonstração do italiano que deu certo.
Apesar da traição da mulher, o personagem Angelo Gardone, um típico descendente de imigrante, foca sua vida no trabalho, arrisca ao comprar uma colônia de terra, cria um moinho de farinha, cresce financeiramente, vai morar na cidade e dá origem a um banco. Rico, vê sua família ampliar e ganha o reconhecimento da sociedade. Angelo ilustra o mito italiano da região. Apesar disso, a realidade esconde outro fator: nem todos tiveram a mesma sorte.
"Se tem aquela ideia de que o italiano tem uma propulsão para os negócios. Se a gente vai analisar, os empreendedores foram os que juntaram capital. A grande maioria continuou pequeno, na sua propriedade", esclarece a professora Luiza Horn Iotti, do Mestrado Profissional em História da UCS e que estuda a imigração e relações de poder.
A pesquisadora reforça o posicionamento de que a propriedade foi o grande diferencial em relação às outras etnias que ocuparam a região. Tal como no filme, a produção local lançou as bases para o acúmulo de capital, mas ele só veio de fato com a exploração do comércio. O que era cultivado aqui alimentava também outras cidades. "A nossa região deu certo porque nela foi implantada a única reforma agrária no país, com um sistema de minifúndio. Cada um teve seu pedaço de terra e deu conta do que era seu. Algum ou outro conseguiu se sobressair com o capital", esclarece Luiza.
Depois de 140 anos, cidade e região não são as mesmas. Elas cresceram, exibem pujança empreendedora e demonstram, inevitavelmente, a importância que a imigração teve. Mas outras etnias ajudaram a compor esse cenário de avanços. Novas pesquisas realizadas na Universidade se posicionam em torno da participação, no desenvolvimento regional, dos negros, dos índios e também dos tropeiros que levavam o gado da região dos Vales aos Campos de Cima da Serra.
"Hoje, se você estudar a história de Caxias, já encontra a história dos negros, dos poloneses, e de outros povos. Agora, isso começa a ter um outro valor", explica a professora Vania, demonstrando que a cidade - e a pesquisa - têm sim espaço para a multiculturalidade.
Revista UCS - É uma publicação bimestral da Universidade de Caxias do Sul que tem como objetivo discutir tópicos contemporâneos que respondam aos anseios da comunidade por conhecimento.
O texto acima está publicado na décima oitava edição da Revista UCS que já está sendo distribuída nos campi e núcleos.