Ezequiel Vedana da Rosa, Ariane Pelicioli e Bruno Rafael de Souza, criadores da Piipee: cinco anos e meio de pesquisa, testes, desenvolvimento e negociações de investimento até a prontidão para lançar-se ao mercado em escala industrial. Foto: Arquivo pessoal/Divulgação

START PROFISSIONAL

RESULTANTES DA REVOLUÇÃO CULTURAL DA ERA DIGITAL, STARTUPS RESSIGNIFICAM CONCEITOS, ALTERAM DINÂMICA E TRANSFORMAM JOVENS EM PROTAGONISTAS DO EMPREENDEDORISMO

ARIEL ROSSI GRIFFANTE - argriffante@ucs.br

Ezequiel estava dormindo. Despertou, sentou-se na cama, e percebeu uma pergunta em mente: por que se consome tanta água potável no vaso sanitário? Chegou a formulá-la ao pai, que jogava videogame no quarto - e apenas anuiu brevemente sem desprender-se do entretenimento. Era março de 2010 e o então estudante de Comércio Internacional de imediato passou a pensar em uma solução química - em ambos sentidos - para a economia de pelo menos 80% da água (o correspondente ao descarte da urina) utilizada nas descargas de banheiros Brasil afora. Cinco anos depois, a inquietação pessoal que gerou propósito social está prestes a se consolidar como empreendimento profissional.

A pretensão de criar uma solução para um problema real e relevante; desenvolvida a partir de uma tecnologia inovadora e com alto grau de incerteza sobre a receptividade do mercado; a possibilidade de reprodução do modelo em qualquer lugar sem grandes customizações (repetibilidade); e a perspectiva de, uma vez consolidado o produto, obter crescimento exponencial com manutenção de baixo custo (escalabilidade), acabariam por dar à iniciativa do bentogonçalvense Ezequiel Vedana da Rosa, 27 anos, a caracterização de uma startup (veja quadro abaixo).

O termo surgiu nos Estados Unidos no final dos anos 1990, com a expansão os negócios 'pontocom' no Vale do Silício, Califórnia, e entrou no Brasil na virada do século. Embora empregado desde o surgimento dos empreendimentos com base tecnológica para definir o 'dar início' àqueles desencadeados com pouco capital e muita inventividade, o conceito ganhou força com a indústria da informática - sendo exemplo mais emblemático a Apple, surgida em 1976. Consolidou-se como modelo de negócio, contudo, com a massificação da Internet. Por aqui, o formato startup intensificou-se nos últimos cinco anos, alavancado por jovens como Ezequiel, sua esposa, Ariane Pelicioli, 24, e o amigo Bruno Rafael de Souza, 29, (à época acadêmicos iniciantes de Psicologia e de Publicidade e Propaganda, respectivamente), a quem convocou para a empreitada que resultaria na criação do Piipee - produto composto por um dispositivo de acionamento e uma solução química bactericida e biodegradável, capaz de atuar nas características físico-químicas da urina, alterando sua coloração e eliminando o odor, dispensando, assim, o uso da descarga sanitária (leia mais na página 9).

Características das Startups

INOVAÇÃO: é a introdução, com êxito - representado pela viabilidade comercial -, no mercado, de novos (ou com características diferentes dos já existentes) produtos, serviços, processos, métodos e sistemas. O segredo é se colocar no lugar do consumidor e buscar oferecer uma saída simples e de impacto na rotina das pessoas, para um problema real e relevante.
BASE TECNOLÓGICA: os projetos, de qualquer porte ou setor, devem ter na inovação tecnológica os fundamentos de sua estratégia competitiva, propondo novos ou melhorados produtos ou processos. O termo produto se aplica a bens e serviços, podendo ser softwares, aplicativos, hardwares ou outro tipo de equipamento, método ou procedimento.
REPETIBILIDADE: ser repetível implica a reprodução do modelo produtivo em qualquer lugar, em escala potencialmente ilimitada, entregando o produto sem muitas customizações ou adaptações para cada cliente. Pode ocorrer tanto com a venda de uma mesma unidade várias vezes (caso de um software) ou mantendo o produto disponível independentemente da demanda.
ESCALABILIDADE: trata do potencial do empreendimento de crescer rapidamente, com ampliação exponencial da receita e baixa elevação de custo, sem que isso influencie no modelo de negócio. Para alguns teóricos, quando se torna escalável, a startup deixa de existir, consolidando-se como empresa lucrativa.
ALTO RISCO: o propósito inovador traz consigo um cenário de incerteza - não se pode prever a reação do mercado ao produto ou serviço, havendo maior risco de rejeição ou de o projeto não se provar sustentável.


Walter Sengik Cruz, acadêmico de Engenharia de Controle e Automação: remodelação constante, rede de contatos e muita relação com clientes e usuários.

LIÇÕES INOVADORAS

Embora, como evidencia a Piipee, startups não signifiquem, necessariamente, desenvolvimento de produtos, serviços, processos, métodos ou sistemas ligados ao ambiente digital, o conceito se consagra no universo dos softwares. A razão é simples: eles são mais repetíveis e escaláveis (características fundamentais do modelo) do que outras soluções. Nesse contexto, amparado no acesso cada vez mais universalizado à interconectividade - atualmente são 81,5 milhões os usuários com acesso à Internet por smartphone no Brasil - o grande filão são os aplicativos.

É o caso do PéBaixo, que mostra informações sobre ofertas de calçados em lojas próximas de onde o consumidor pesquisa, criado pelo acadêmico de Engenharia de Controle e Automação Walter Sengik Cruz, 24 anos. Desenvolvido na disciplina de Empreendedorismo da UCS, no primeiro semestre de 2014, o trabalho tornou-se, desde então, mais do que negócio, condição para valiosas lições profissionais a seu idealizador.

"Uma startup precisa estar constantemente se remodelando, conferindo se o mercado está preparado para receber novo produto; se a solução oferecida é madura o suficiente; e se o usuário estará interessado naquela solução", ensina.

Segundo ele, o aprendizado veio logo nas primeiras explorações dos potenciais do negócio. O retorno colhido trouxe muito mais reconsiderações do que aprovações à ideia inicial (um software que mostrava produtos em geral das lojas de determinado entorno), obrigando a uma nova formatação. Na linguagem das startups, ocorreu uma 'pivotagem' - redirecionamento de estratégia quando a experimentada não dá resultado. "Nesse teste de validação da hipótese vi que não tinha jeito. Seria impossível manter um banco de imagens de todos os produtos, o que se propunha a ser um diferencial", conta Walter, explicando a decisão de deter-se aos calçados.

"A melhor forma de conhecer a viabilidade é ir pra rua, contatar potenciais clientes e usuários", destaca. Ele valoriza, ainda, a troca de informações também entre empreendedores como uma necessidade que se impõe - e se opõe - a um dos maiores dogmas do meio corporativo: "É preciso esquecer o medo de falar achando que vão roubar a ideia. Uma startup necessita de uma rede de contatos muito forte. Críticas geram muita construção para o negócio", enfatiza.


PROGRAMA DA UCS INCENTIVA O MODELO

Alinhada à posição de vanguarda no incentivo ao desenvolvimento regional, a Universidade de Caxias do Sul realiza, até dezembro, a primeira edição do StartUCS - Transformando Ideias em Negócios, projeto de fomento a startups objetivando o desenvolvimento e a inserção de novas empresas no mercado de forma sustentável e competitiva. Vinculada ao Programa de Empreendedorismo, a iniciativa é dirigida a estudantes de graduação e pós-graduação, professores e funcionários, sendo limitada a dez empreendimentos.

A execução do StartUCS se dará em duas fases. A primeira, destinada ao aperfeiçoamento da ideia e estruturação do modelo de negócio, é composta por 20 encontros semanais de 3 horas, com mentoria de especialistas das áreas de tecnologia, investimento, contabilidade, finanças, psicologia, jurídica e da Incubadora Tecnológica da UCS. Ao final do cronograma será realizado um pitch-day de 3 a 5 minutos para exposição dos projetos a potenciais investidores.

A segunda fase será voltada à consolidação efetiva da empresa, com a elaboração de um plano de negócio envolvendo a criação de um protótipo testável e a busca de clientes. "Nesse momento há um produto físico, validação técnica e comercial, qualificando a empresa a receber aporte financeiro", explica o professor Enor Tonolli.

Mesmo os projetos que não ingressarem no mercado terão oportunidade de seguir sendo aperfeiçoados na Incubadora Tecnológica, que disponibilizará espaço físico, infraestrutura, secretaria e busca de fomento para a startup.

FRACASSO PRA QUE TE QUERO

Da relação com a crítica e a contrariedade, aliás, emerge do meio das startups um dos aspectos mais transformadores trazidos pela cultura digital: a ressignificação do conceito fracasso. "A frustração é característica desse ambiente, e a resiliência uma condição necessária. É comum a ideia ser rejeitada, adaptada e aperfeiçoada. O aparente fracasso dá experiência para se constituir algo mais sólido", esclarece o doutor em Administração e mestre em Engenharia de Produção Enor Tonolli, professor do Programa de Empreendedorismo da UCS. "Nos Estados Unidos é de 100 vezes a média de participações em pitch-days (eventos de apresentação de projetos no tempo de um a três minutos) até uma startup conquistar um investidor", ilustra.

Esse movimento traz embutida uma mudança de abrangência sociocultural. "No Brasil o fracasso tem uma conotação social terrível. Para evitá-lo não se ousa, não se inova. Somos vistos como criativos, mas o país é um dos menos inovadores do mundo", aponta Tonolli. "Nos Estados Unidos fracasso é currículo; é como o empreendedor aprende o que precisa para consolidar uma ideia", completa. Desse modo, ao salientar que empreender está muito mais relacionado a comportamento - dependendo de autoconfiança, autonomia e criatividade - do que conhecimento técnico, o professor o que as startups se estabelecem como espaços de competência, conhecimento e foco.

Aluno que levou a teoria à prática e nela reuniu experiência, o criador do PéBaixo, atesta: "A maturidade para aprender com os erros e ver onde melhorar é muito importante. O fundamental para empreender é foco e persistência; a inteligência do negócio vem com o tempo", defende Walter Sengik, confirmando que houve relativo abatimento perante a - embora esperada, ainda impactante - rejeição do mercado à primeira versão lançada do aplicativo.

Para não sucumbir ao desânimo, o acadêmico buscou amparo em especialistas, participando de nada menos que 12 programas de mentoria e qualificação. "Acreditar que basta uma ideia e trabalhar na garagem para ficar milionário é doce ilusão. Criar um aplicativo é como criar qualquer produto final. Dedicação é o que vai fazer a diferença entre um empreendedor e alguém apenas idealista", define.

SOLUÇÃO REAL E RELEVANTE

Cinco anos e meio depois do inusitado despertar questionando o uso da água potável em uma manhã qualquer, o Piipee está às vésperas de ser lançado comercialmente. Segundo o idealizador Ezequiel Vedana da Rosa, egresso da UCS, o dispenser (entre R$ 40 e R$ 50) e refis (R$ 25 o litro, que garante 500 acionamentos) devem ingressar no mercado em até 90 dias, a partir de uma produção de mil unidades/mês.

O impulso para a escala industrial - linha de chegada de uma startup e ponto de partida de uma empresa - será dado pelo fechamento de acordos de investimento (cujos valores só serão divulgados na finalização dos contratos) construídos depois de muita pesquisa e experimentação. "Passei um ano urinando em copinhos e fazendo misturas para testar o efeito", brinca Ezequiel, que desde a metade de 2014 dedica-se exclusivamente ao empreendimento.

O processo levou ao desenvolvimento de uma solução biodegradável e bactericida composta por essência de pinho e eucalipto (agora há mais três opções de fragrância) formando o princípio ativo, que, com pouco mais de 1ml por aplicação em spray, atua na eliminação do odor e alteração da cor da urina - responsável por 80% das descargas em vaso sanitário, ao qual o dispositivo é acoplado.

Instalada em Bento Gonçalves, a empresa teve 30 mil unidades pré-vendidas até abril deste ano, e, desde então, outras 15 mil encomendadas, estima Ezequiel. Repercutido na mídia nacional, o produto chamou a atenção desde empresas com milhares de funcionários até de famílias com vários filhos, tendo em comum o interesse em testar a eficácia da solução.

FOCO, PERSISTÊNCIA E APERFEIÇOAMENTO

"A principal característica de uma startup é procurar solucionar um problema do mercado". Com esta premissa (uma das várias a partir das quais exibe domínio de argumentação sobre o modelo de empreendimento), o estudante Walter Sengik Cruz explica a inspiração para a criação do PéBaixo. O aplicativo para smartphone possibilita consultar a disponibilidade de calçados por tipo, preço e visualização de imagens, com indicações de lojas próximas e promoções. "O e-commerce faturou R$ 35,8 bilhões no Brasil em 2014. Se não crescerem no online, as lojas físicas vão perder muito mercado", justifica.

A facilidade de pesquisa e compra é decisiva para o sucesso das vendas pela Internet. Por outro lado, a maioria dos consumidores ainda prefere provar as peças antes de adquiri-las. Com isso, o PéBaixo se encaixa no espaço que combina as vantagens dos dois sistemas.

O produto é disponibilizado aos comerciantes mediante uma mensalidade entre R$ 60 e R$ 100. "A ideia é oferecer uma ferramenta de comunicação, com o foco de levar o cliente até a loja", define o idealizador. Em virtude disso, pontua Walter, novas funcionalidades estão sendo implementadas, como a concessão de descontos para quem escolher um estabelecimento por meio do software e a divulgação das redes sociais das lojas cadastradas.

Em paralelo à procura de investidores e ao trabalho de colocar o produto no mercado, o jovem segue buscando aperfeiçoamento. Após a formação em Engenharia de Controle e Automação pela UCS, Walter pretende especializar-se em Gestão de Marketing visando habilitarse à promoção do aplicativo. Os maiores desafios, enquanto isso, também são tipicamente 'startupeiros': as limitações financeiras e o tempo parcial, razão e decorrência da manutenção do emprego como projetista elétrico em uma grande empresa de Caxias.










Conceitos

Modelo de negócios: descreve a lógica de criação, entrega e captura de valor por parte de uma empresa. É como a startup apresenta-se como capaz de transformar sua ideia em resultado financeiro.
'Pivotar': derivado do inglês to pivot (girar sobre um eixo, mudando de direção), refere ao redirecionamento do negócio depois de uma estratégia testada não ter levado a resultados esperados. Como as startups são empresas novas ou em fase de consolidação, a pivotagem serve, essencialmente, para formatar o negócio.
Investidor-Anjo: pessoa física que investe capital próprio em startups em troca de participação no negócio e assumindo papel de mentor ou conselheiro, sem posição executiva na empresa. O termo 'anjo' é conferido pela concessão de apoio ao novo empreendedor por meio do repasse de know-how, experiência e orientação em rede de relacionamento, não ficando, portanto, a participação restrita ao aporte financeiro ao negócio.
Gestão de recursos: é um modelo complementar e subsequente ao investimento-anjo, realizado a partir de recursos de terceiros geridos por fundos de investimento e similares. Segundo a organização Anjos do Brasil, o aporte total por empresa no país tem variado, em média, entre R$ 200 mil a R$ 500 mil, podendo chegar a R$ 1 milhão.
Aceleradoras: são organizações que impulsionam as startups oferecendo capital, espaço físico, mentoria e networking, assim denominadas por, com este método, acelerarem o ingresso dos empreendimentos no mercado - em geral no período de três a seis meses. Em contrapartida, recebem a designação, normalmente, de 10% a 20% das ações da nova empresa.



Revista UCS - É uma publicação bimestral da Universidade de Caxias do Sul que tem como objetivo discutir tópicos contemporâneos que respondam aos anseios da comunidade por conhecimento.

O texto acima está publicado na décima oitava edição da Revista UCS que já está sendo distribuída nos campi e núcleos.

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