ARIEL ROSSI GRIFFANTE - argriffante@ucs.br
Assim como na tradição cristã - um dos principais objetos de estudo, arte e fé de Aldo Locatelli - Deus deu, do barro, forma ao Homem, e inúmeras manifestações à criação, o artista, em tintas e pincéis, deu rosto ao imigrante italiano e ao colonizador português, e imagem e expressividade à fé e aos valores desses povos. Retratada em obras históricas, alegóricas e sacras, o simbolismo estético daquilo que compõe as identidades gaúcha e ítalo-riograndense teve, em Locatelli, um criador particular.
O fenômeno se repetiu com o próprio artista e com sua arte. No Brasil, Locatelli encontrou a identidade de mestre, como professor e Mago das Cores - epíteto recebido dos admiradores no intuito de sintetizar a destacada versatilidade de seu trabalho. Como homem, naturalizou-se brasileiro, teve seus filhos e fincou raízes no país depois de cruzar o oceano para não mais voltar - a exemplo dos conterrâneos e dos vizinhos europeus, de quem narrou sagas e religiosidade em murais, afrescos e telas. Influenciada pela cultura brasileira, sua técnica e inspiração acabariam também incrementadas pelos traços nacionais, configurando identidade singular ao conjunto de sua obra.
EXPOENTE CULTURAL - "Aldo Locatelli tornou-se o artista de maior reconhecimento em afrescos no Rio Grande do Sul. O conjunto da sua obra é muito grande e expressivo, sendo uma das referências da pintura sacra no Brasil", destaca a professora do Centro de Artes e Arquitetura da UCS, Silvana Boone. "Sua obra não segue um padrão característico de movimentos artísticos contemporâneos ao artista, mas traz a irreverência advinda tanto de referências renascentistas quanto traços expressionistas da pintura moderna".
Para o pesquisador do Instituto de Artes de Porto Alegre (onde Locatelli lecionou), Paulo Gomes, o pintor ajudou a plasmar a autoimagem que o Estado necessitava no contexto sociocultural do pós-Guerra - "um Rio Grande ávido por se modernizar após o longo período do Estado Novo de Getúlio Vargas" - colocando-se entre expoentes da cultura riograndense, como Simões Lopes Neto, Erico Verissimo e os fundadores do movimento tradicionalista. "Multiplamente talentoso e hábil, Locatelli posicionou-se no reduzido grupo de artistas que lograram criar uma identificação imediata do público com seu Estado e com suas obras e, mais raro ainda, nos pouquíssimos casos nos quais essa identificação está atrelada ao nome de seu autor", define Gomes.
O Mago morreu no ápice, em 1962, com menos de meio século de vida, mas a tempo de ser reconhecido como um dos mais importantes pintores sacros e regionalistas do Brasil, deixando um legado celebrado ao longo das décadas. Especialmente em Caxias do Sul, onde o vigor impactante do auge de sua criação artística combina-se em serenidade e imponência com a Igreja São Pelegrino, dando residência definitiva ao conjunto hoje considerado sua obra-prima.
TALENTO LAPIDADO PELA FÉAldo Daniele Locatelli nasceu em 18 de agosto de 1915 em Villa d'Almè, na Lombardia, Norte da Itália. O interesse pela pintura despertou aos dez anos, quando teve contato com artistas que restauravam a igreja da cidade vizinha de Bérgamo que estavam alojados no restaurante de seu pai. Aos 16 fez o primeiro curso de decoração, tomando contato com a estética dos grandes mestres renascentistas. Um ano depois, ingressou na Academia Carrara de Belas Artes, de Bérgamo. Em 1937, consegue uma bolsa de estudos para a Escola de Belas Artes de Roma.
Em seguida surgem as primeiras oportunidades de trabalho. A profissão é interrompida em maio de 1940, com a convocação para a II Guerra Mundial. Compõe um regimento de Infantaria que combate no Norte da África. É dispensado em outubro e remobilizado em abril de 1941, desta vez baseado em Ospedalete, cidade próxima à fronteira com a França, onde viria a conhecer sua futura esposa, Mercedes Biancheri.
Mesmo ferido em ação, é mantido em operações no Mediterrâneo até setembro de 1943. A guerra não tira a vida de Aldo, mas marca um período de perdas profundas. Seu pai, Luigi, morre quando ele está na África. O irmão, Ângelo, é vitimado em batalha em 1943. No ano seguinte, falece sua mãe, Anna.
VIDA PELA ARTE - De volta à Villa d'Almè e à pintura, emenda uma série de trabalhos e ganha projeção, especialmente como muralista sacro. Em 1948, a equipe de Aldo Locatelli e Emilio Sessa é indicada por Dom Ângelo Roncalli, então núncio apostólico do Vaticano em Paris (e que viria a se tornar o Papa João XXIII), para a decoração da Catedral São Francisco de Paula, em Pelotas, a partir de solicitação do bispo Dom Antonio Zattera.
Locatelli chega em 1º de novembro com a intenção de concluir o trabalho e retornar à terra natal. Acabaria por trazer a mulher, ter seus dois filhos Roberto (1950) e Cristiana (1952) em Pelotas, naturalizar-se brasileiro (1954) e permanecer no país até o fim da vida. A morte ocorreria de forma precoce, aos 47 anos, em decorrência de câncer pulmonar, em 3 de setembro de 1962, em Porto Alegre, onde foi sepultado.
CONSAGRAÇÃO NO BRASIL - Interessada em resgatar a condição de referência cultural que a caracterizara no final do século XIX e início do século XX, Pelotas instala a Escola de Belas Artes em 1949, convidando Locatelli a se tornar o principal professor. No ano seguinte, o padre Eugênio Giordani contrata o artista para a decoração daquela que se constituiria em sua mais emblemática realização: a decoração da Igreja São Pelegrino.
No período, trabalha intensamente pelo Estado, passando também por Santa Maria, Novo Hamburgo e Porto Alegre, onde é convidado a lecionar Arte Decorativa no Instituto de Belas Artes. Produz afrescos religiosos e murais de caráter alegórico e histórico, caracterizados pela monumentalidade, carga emocional e simbolismo cultural - casos dos painéis de A Formação Histórico-Etnográfica do Povo Rio-Grandense, no Palácio Piratini, e Do Itálico Berço à Nova Pátria Brasileira, produzido para a Festa da Uva de 1954.
O QUE PRESERVA O LEGADO DO ARTISTA EM CAXIAS
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Consagrado em Caxias do Sul com a execução do altar e do teto da Igreja São Pelegrino, inaugurados em 1953, Aldo Locatelli é convidado pelo então presidente da Festa da Uva, Júlio Ungaretti, para pintar um mural no novo pavilhão do evento , que seria inaugurado no ano seguinte - hoje sede do Centro Administrativo Municipal.
A festa de 1954 reunia uma conjugação de fatores históricos e sociológicos que acabariam representados na obra. Além da primeira edição nas espaçosas e imponentes instalações, o evento celebraria os 75 anos da imigração italiana na região e apresentaria, em paralelo, a 1ª Feira Industrial do Rio Grande do Sul. Isso demarcaria a virada definitiva da identidade caxiense, da 'colonial' cidade central da região da uva para a referência industrial líder do desenvolvimento da Serra. Essa ressiginificação atingiria a identidade da própria Festa da Uva como principal vitrine de Caxias do Sul, que desde então alicerça seu conceito nesta significação sociocultural.
TRABALHO - Com uma combinação precisa entre sensibilidade e assertividade nos traços e temáticas, Locatelli deu forma, cores e expressões a todos esses aspectos no magistral Do Itálico Berço à Nova Pátria Brasileira (reprodução acima). Com 30,8m de extensão por 2,75m de altura, o mural retrata, em oito sequências, a trajetória imigrante.
O trabalho - em suas facetas brutas, delicadas, detalhistas e engenhosas, empregadas pela determinação do homem - é enfatizado como valor primordial e impulsionador do progresso. O resultado oferece uma síntese visual inigualável da identidade ítalo-riograndense.
FAMÍLIA - Essa fundamentação aparece desde o primeiro quadro e na disposição não-cronológica. O painel no centro da composição mostra a chegada da família imigrante, com o homem à frente, empunhando uma pá expressando determinação e o olhar entre o cansaço, a apreensão e a consciência do desafio de construir o futuro diante do desconhecido.
A sequência, com a instalação na nova pátria, ocorre para a esquerda de quem visualiza, com as imagens da árdua conquista da terra - simbolizada nas tarefas para sua ocupação e extração do sustento -, harmonizada com a suavidade da presença de uma mãe amamentando o bebê - o que insere a família como retaguarda e causa para o empenho desbravador. Seguem-se a semeadura (em uma plástica ilustração da virilidade masculina a serviço da tarefa sutil da fecundação), o cultivo e colheita da uva, ápice de todo empenho anterior - tornada celebrativa pela presença feminina, no gestar e no receber os frutos.
E PROGRESSO - Para a direita ruma a representação do progresso advindo do esforço imigrante. Surgem as construções de alvenaria. O ferro é forjado, fios são tecidos, pedras lapidadas, máquinas construídas e a metalurgia se instala. Como pano de fundo, uma capela apresenta a salvaguarda da fé. Da integração com o gaúcho riograndense, emergem cidades e prosperam indústrias. Do engenho humano sofisticam-se tecnologias que, em meio ao desenvolvimentismo dos anos 1950, são, ao mesmo tempo, consolidação do trabalho empreendido e apontamento de direção para a continuidade progressista.
IGREJA SÃO PELEGRINO - A OBRA PRIMAEm um legado artístico vasto e versátil, é difícil apontar uma obra-prima. No caso de Aldo Locatelli ainda mais, em virtude da atuação em diferentes formas da pintura - mesmo apenas em um dos segmentos, o das obras sacras, por exemplo, é notável a diferenciação de sua produção na Itália, baseada na estética mediterrânea clássica, em relação ao expressionismo do final da carreira.
Por reunir essa diversidade de características e apresentar tanto a produção baseada em mestres renascentistas (teto da igreja), como a ousadia autoral, fazendo uso de elementos incorporados à sua técnica (o modernismo e o cubismo na Via Sacra), o conjunto da Igreja São Pelegrino é considerado a expressão maior do Mago das Cores.
Com a pedra fundamental lançada em 19 de março de 1944, a construção da nova igreja se aproximava da conclusão quando, em 1950, o pároco Eugênio Giordani tomou conhecimento do trabalho de Locatelli na Catedral de Pelotas. Uma visita bastou para a decisão de contratar o artista e equipe para conceber e executar a decoração do templo caxiense.
O trabalho nos afrescos (altar, naves laterais e teto) se inicia em 1951 e fica pronto para a inauguração da igreja, em 2 de agosto de 1953. De 1958 a 1960, Locatelli produz, em seu atelier, em Porto Alegre, os 14 óleos sobre tela da Via Sacra, descerrada em 22 de maio de 1960.
TETO - O JUÍZO FINALO teto da igreja é o grande trabalho renascentista de Locatelli. As pinturas formam uma grande cruz, em cuja base está o quadro da Criação do Cosmos, inspirado na estética de Rafael Sanzio, no qual a figura onipotente de Deus sobrepõe-se à Criação (abaixo, à esquerda).
O segundo quadro é a Criação da Mulher (ao centro), na qual a figura feminina não aparece, e sim a sugestão de seu surgimento, com Adão semidesacordado aos pés de Deus. Segue-se a Expulsão do Paraíso (abaixo, à direita), com Adão e Eva em envergonhada retirada sob a ordem imposta pelo apontamento de uma espada por um anjo.
Neste último quadro surge a influência de Michelângelo, que ganhará culminância no trabalho mais conhecido de Locatelli, o afresco do Juízo Final (reproduzido na capa desta edição), inspirado no executado pelo mestre renascentista na Capela Sistina (Vaticano).
Na obra, Jesus preside o Julgamento que sucedeu à Desobediência. Junto dele estão seus seguidores e auxiliares terrenos (Maria e José, São Pedro, São Paulo, São João Batista, Moisés e os profetas). Acima, anjos com trombetas anunciam o Juízo Final. Abaixo, dividem-se os aceitos no Reino dos Céus, próximos de São Miguel (à direita de Cristo), e os ímpios e condenados, à esquerda. Ao centro, bem e mal lutam pelas almas daqueles que estão sendo julgados.
Pintado em 11 dias, o mural da Santa Ceia, no altar (capa desta edição), foi a primeira obra executada na igreja. Nele, destacam-se a mesa em forma de U e o jogo de cores que o pintor faz entre a iluminação externa e interna da cena - elementos que remetem à singularidade que Locatelli perseguia. Abaixo está a representação dos símbolos dos quatro evangelistas, remetendo à quádrupla qualidade de Jesus (Homem, Rei, Sacerdote e Deus).
No arco que circunda o altar encontram-se, à esquerda do observador, a figura de São José com o Menino Jesus no colo (cujo rosto foi inspirado no filho do artista, Roberto), e, à direita, o padroeiro São Pelegrino.
Às laterais do arco estão os afrescos Aparição do Sagrado Coração à Santa Margarida Maria Alecoque, à esquerda, e Aparição de Nossa Senhora de Caravaggio à Camponesa Joaneta¸ à direita.
As naves laterais contam com as Sete Obras de Misericórdia Corporais (à esquerda) e as Sete Obras de Misericórdia Espirituais (à direita), pintadas por Emílio Sessa a partir de desenhos de Locatelli.
TETO - DIES IRAENo entorno dos afrescos principais, 36 quadros de 2,10m x 2,10m trazem as 19 estrofes (dois versos por quadro), em latim, do Hino do Juízo Universal. De autoria atribuída ao frade franciscano Thomás de Celano no século XIII, o Dies Irae (Dia da Ira) era recitado em atos fúnebres antes da reforma litúrgica.
"Estão presentes elementos simbólicos do encontro do homem com seu destino, em imagens ora serenas, ora angustiadas diante do inevitável", descreve o pesquisador Luiz Ernesto Brambatti no livro Locatelli no Brasil. A obra é tida como única em toda a arte sacra universal.
VIA SACRACinco anos após concluir os afrescos da Igreja São Pelegrino, Aldo Locatelli foi novamente chamado pelo Padre Eugênio Giordani. O pedido agora eram as estações da Via Sacra, a obra final para o templo e para o artista em Caxias do Sul. Consagrado no Estado, radicado em Porto Alegre como professor do Instituto de Artes da UFRGS, e com sua fama expandindo-se em São Paulo, onde vinha sendo frequentemente contratado, Locatelli aceitou pedindo tempo e liberdade criativa. Recebeu carta-branca do pároco e pôs-se a produzir aquele que, para a professora Vera Stédile Záttera, é o ápice do Mago das Cores.
"O que ele quer representar não é a corriqueira história repetida inúmeras vezes por muitos pintores. O que o ofende mais é o cínico, o irrisório, o mortal comportamento da sociedade atual. É a dor da incompreensão de todos para com todos", diz a pesquisadora no livro Aldo Locatelli, a respeito do realismo empregado na obra. "É esse sentimento que o leva a analisar uma obra sobre crucificados, o livro A Paixão de Cristo Segundo o Cirurgião, do francês Pierre Barbet".
Foram três anos até a conclusão das 14 pinturas de 2,50m x 1,80m. Durante os estudos, Locatelli se faz fotografar nas posições que imaginara para o corpo de Jesus na obra, de modo a extrair a maior realidade anatômica possível, que seria combinada com distorções de perspectivas destinadas a conferir maior dramaticidade às cenas.
O pesquisador Luiz Ernesto Brambatti observa que o artista "incorporou elementos do cotidiano, numa linguagem expressionista, utilizando elementos modernos vinculados à imagem". Isso justifica a presença de um sapato atirado contra Jesus na estação 3 (Jesus cai pela primeira vez), reproduzida acima; da lata de café na estação 6 (Verônica limpa o rosto de Jesus) e de uma vassoura na 9 (Jesus cai pela terceira vez). Na estação 8 (Jesus encontra as mulheres de Jerusalém), Locatelli manteve o costume de inserir rostos conhecidos nas telas com sua filha, Cristiana, como a menina oferecendo o pote de água em primeiro plano, simbolizando a pureza da misericórdia.
Revista UCS - É uma publicação bimestral da Universidade de Caxias do Sul que tem como objetivo discutir tópicos contemporâneos que respondam aos anseios da comunidade por conhecimento.
O texto acima está publicado na décima nona edição da Revista UCS que já está sendo distribuída nos campi e núcleos.