"Utilitarismo é uma teoria filosófica a respeito do modo como se deve entender os fundamentos da ética"
Para entender o que seja Utilitarismo, é conveniente ter bem presente que esse termo não designa um tipo de atitude ética assumida por certas pessoas na vida comum, mas é uma teoria filosófica a respeito do modo como se deve entender os fundamentos da ética. Esta observação preliminar é indispensável porque o senso comum tende a tomar a palavra utilitarismo como designando condutas orientadas somente para a satisfação de interesses materiais, ou, então, como a atitude de quem, egoisticamente, não tem outro objetivo na vida do que a busca de seu próprio prazer e bem-estar.
Há nisso, porém, um grande mal-entendido. A doutrina filosófica denominada Utilitarismo não tem nenhum compromisso com esse significado vulgarmente atribuído ao termo. É um contrasenso imaginar que uma das mais importantes doutrinas éticas, ao lado da Ética das Virtudes e da Ética do Dever, uma das três mais importantes correntes do pensamento filosófico sobre a ética, pudesse ser uma espécie de endosso teórico a condutas egoisticamente autorreferidas e só interessadas na obtenção de confortos e prazeres físicos. Na verdade, como toda doutrina ética, o Utilitarismo é uma teoria sobre os fundamentos da conduta moral e sobre o critério que, em última análise, permite-nos avaliar e julgar as ações que praticamos, as condutas que devemos seguir e as normas que devemos adotar no curso de nossa vida. E a tese fundamental do Utilitarismo é que o procedimento recomendado para tais avaliações é o de determinar em que medida o que fazemos contribui, não para a felicidade individual, mas para a felicidade global de todos os seres vivos do mundo em que vivemos. A diretriz geral proposta para tais avaliações é, pois, a de que elas têm que se concentrar no cálculo das consequências do que fazemos.
Não se pense, porém, que a teoria utilitarista exige que a cada vez que tomamos uma decisão, por exemplo: a de cumprir ou quebrar uma promessa, ou sobre como reagir frente aos agravos que sofremos e assim por diante, tenhamos que anteriormente fazer um cálculo exato das consequências das opções que temos diante de nós.
Como John Stuart Mill (junto com Jeremy Bentham e Henry Sidgwick um dos três membros da troica que forma o pensamento utilitarista clássico) bem explica, na vida ordinária podemos confiar nas regras morais comuns, pois estas já trazem embutidos os cálculos que foram imemorialmente feitos com relação aos principais tipos de condutas humanas em relação à promoção da felicidade.
Assim, por exemplo, devemos ver que a regra moral, que nos diz que as promessas devem ser cumpridas, condensa um cálculo anonimamente feito pelas sociedades humanas, com relação aos malefícios que a falsidade e a consequente falta de confiança trazem para a vida em sociedade. E o mesmo poder-se-ia dizer de grande parte das outras regras morais comuns.
A teoria utilitarista não está, contudo, livre de dificuldades. Assim, o próprio conceito de felicidade está muito longe de ter um conteúdo consensual, pois notoriamente há diferenças no modo como tal conceito é determinado em diferentes momentos e contextos. A tese de Mill, porém, é que a determinação do conteúdo do conceito de felicidade não pode ser feita por meio de pesquisas de opinião, mas precisa ser buscada nas lições de homens experientes, cultos e sábios, pois somente estes, pela largueza de suas experiências e pela agudeza de sua inteligência, têm condições de reconhecer o que seja a verdadeira felicidade. Outro ponto difícil diz respeito ao alcance da expressão "felicidade global". Para uma boa parte dos utilitaristas, o bem-estar dos animais não humanos também deve ser levado em conta na determinação do conteúdo da felicidade global. Também complexa é a questão de saber se, nas avaliações morais, se deve considerar somente o somatório das felicidades individuais, fixando-nos na busca do máximo de felicidade alcançável por uma determinada comunidade, ou se o modo de distribuição da felicidade também conta, caso em que o que importa não é a felicidade total a alcançar, mais a maior felicidade média possível. O ponto mais difícil para a defesa do Utilitarismo é, porém, a resistência a aceitar que a promoção da felicidade global autorize moralmente o sacrifício de inocentes, tese que implica negar a existência de direitos humanos invioláveis.
A despeito dessas dificuldades, é forçoso reconhecer que o Utilitarismo é uma doutrina ética que tem muitos atrativos, pois é inegável que a busca da felicidade e a eliminação do sofrimento são desejos universais. Do mesmo modo, o cálculo das consequências, como base para toda avaliação moral, parece ser uma boa diretriz, pois, como se costuma dizer, de boas intenções o inferno está cheio. Discutir em detalhe todas essas questões é, contudo, uma outra história.
Professor Dr. João Carlos Brum Torres, coordenador do Programa de Pós-graduação em Filosofia.
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O texto acima está publicado na quarta edição da Revista UCS que já está sendo distribuída nos campi e núcleos.