"Dalla Italia noi siamo partiti" diz a canção "Mérica, Mérica". Símbolo do processo de colonização no Sul do Brasil, a música reflete sobre as condições de vida dos primeiros imigrantes em solo gaúcho. Por aqui, o contato de culturas propiciou o surgimento de uma nova forma de vida. Na Serra gaúcha, a presença de um falar italiano marcou gerações. O hábito de estabelecer diálogos em Talian - língua que surge a partir de diferentes dialetos trazidos pelos imigrantes - ainda existe, mas vem perdendo espaço.
"O 'nosso dialeto' já se tornou uma língua restrita a pequenos grupos. Normalmente, apenas os mais idosos ainda conversam entre eles em dialeto", reflete a professora Giselle Olivia Mantovani Dal Corno, que pesquisa as relações entre os movimentos humanos e as transformações da língua.
Professora no Programa de Pósgraduação em Letras, Cultura e Regionalidade, Giselle coordena a pesquisa "Léxico e identidade regional nas comunidades da antiga rota dos tropeiros". Por meio dela, a pesquisadora analisa como elementos linguísticos podem refletir os traços da cultura tropeira na identidade dos descendentes de italianos na região.
Num primeiro momento, a pesquisa focou sobre Criúva, distrito caxiense que testemunhou a passagem de muitas tropas - de gado, de mulas, de porcos -, especialmente a partir do século XVIII. Atualmente, o projeto está na segunda fase e estuda os distritos de Vila Seca e Ana Rech. Esses locais também serviram de postos de passagem para as tropas, especialmente pela oferta de serviços, como ferrarias e selarias, além de estabelecimentos para o pouso, alimentação e comércio. "O exemplo mais clássico é a casa de hospedagem da imigrante italiana Anna Rech. No local, muitos tropeiros passavam a noite antes de seguir viagem", relata Giselle.
Nesse contato entre diferentes culturas, as influências entre os idiomas acabaram se acentuando. "Nas regiões pesquisadas, houve uma miscigenação muito forte, resultando numa espécie de 'serrano caxiense', que tem entre seus hábitos tomar chimarrão e comer polenta", ilustra.
No campo da língua, essas influências se localizam na integração ao léxico de palavras específicas do vocabulário de cada cultura.
Para os descendentes italianos, ao usarem o dialeto, é comum desenvolverem uma frase inteira, e em determinados momentos, utilizarem expressões ou palavras em português - e vice-versa. "Às vezes, chegam a utilizar uma pluralização típica do italiano para termos em português", explica.
Em relação ao tropeirismo, o que se observa é uma incorporação de palavras relacionadas a esse ofício ao vocabulário Talian. Guaiaca, bruaca, xucro são exemplos de termos que passaram a permear o dicionário de ambos os grupos. Por outro lado, expressões típicas dos italianos foram incorporadas pelas comunidades que surgiram ao longo das rotas a partir da permanência dos tropeiros.
A linguagem se caracteriza pela capacidade de se adaptar em diferentes cenários. Funciona como a cultura. Afinal, o idioma é parte constitutiva e um dos principais fatores de coesão da realidade cultural de um povo.
Giselle explica que as pesquisas em relação ao dialeto na Região de Colonização Italiana do Nordeste do Rio Grande do Sul se acentuaram a partir de 1975, quando a imigração completou cem anos. De lá para cá, diversos estudos foram realizados na UCS para tentar compreender a dimensão linguística que envolve o jeito "colonial" de se falar.
Conforme a pesquisadora, as variações do linguajar experimentadas pela região são produtos de mudanças que se perceberam no decorrer de décadas. Atualmente, o dialeto vem caindo em desuso. Apesar de ainda utilizado pelos mais velhos, deixou de ser praticado pelos mais jovens.
Isso tem uma relação muito direta com a atitude linguística que se verificou na região. O papel da Segunda Guerra Mundial vai ter um peso forte para uma redução do uso da língua entre os descendentes de europeus.
A estudiosa explica que, durante o período de guerra, o governo brasileiro estimulou o patriotismo e proibiu a fala de outras línguas em território nacional. A censura e a criminalização inibiram o avanço do dialeto.
"Só se podia falar português. Os pais pouco conversavam com seus filhos, porque as crianças não podiam se expressar em dialeto na escola", exemplifica.
A atitude de negação da língua vai se refletir num certo estigma de quem falava o dialeto - considerada uma prática errada. O tema, inclusive, já guiou diversas pesquisas, entre elas, o projeto Linguagem da Região de Colonização Italiana do Nordeste do Rio Grande do Sul: prestígio e estigmatização, coordenado pela professora Vitalina Frosi, e do qual participaram a própria Giselle e a professora Carmen Faggion.
Essa atitude linguística colaborou para uma acentuada redução do uso da língua.
"Os idiomas também dependem de resoluções políticas. Foi assim com a questão do dialeto durante a década de 1930. Uma decisão política determinou os rumos da fala", reflete Giselle.
A pesquisadora lembra ainda que esses processos já ocorreram anteriormente no País. Em 1758, o Marquês de Pombal proibiu o uso do Tupi, língua indígena que era usada largamente no litoral brasileiro, principalmente, para o comércio. O português, à época, servia apenas para manter as relações com a Coroa.
A Praça Dante Alighieri, situada na área central de Caxias do Sul, guarda o nome de um dos mais importantes escritores italianos - ou possivelmente o maior entre eles. O local já foi chamado Rui Barbosa, mas isso durante a Grande Guerra, quando o italiano foi criminalizado no País. Com o nome recuperado, o local já serviu de ponto de encontro de pessoas que cultuavam o dialeto Talian. Mas hoje a história é diferente.
Com o processo de imigração de senegaleses para o Sul do Brasil, a praça se transformou num ponto de encontro de pessoas que falam o Wolof, dialeto comum na região da África Ocidental. Mas não é apenas a linguagem que vem se modificando. Por aqui, a entrada de africanos no mercado de trabalho e a presença constante de estrangeiros no centro de Caxias do Sul têm modificado a rotina da cidade.
Conforme Giselle, ao comentar a questão da língua, a presença dos senegaleses em Caxias não vai passar incólume. "Certamente, esse processo de contato entre culturas acaba influenciando nos processos linguísticos. Apenas o tempo vai dizer se a região vai incorporar palavras em Wolof ao seu repertório lexical. Mas os senegaleses certamente acabarão adotando palavras em português", aponta.
Na diversidade de culturas é que a língua se adapta, se transforma. A direção que o idioma toma é consequência da bagagem que acumula no caminho. O destino, porém, é sempre incerto.
(Texto: Vagner Espeiorin)
Revista UCS - Publicação da Universidade de Caxias do Sul, de caráter jornalístico para divulgação das ações e finalidades institucionais, aprofundando os temas que mobilizam a comunidade acadêmica e evidenciam o papel de uma Instituição de Ensino Superior.
O texto acima está publicado na oitava edição da Revista UCS que já está sendo distribuída nos campi e núcleos.