"O professor como mediador do mundo" - Entrevista com o professor Lucídio Bianchetti um dos participantes da IX ANPED Sul.
Durante a realização do IX Seminário de Pesquisa em Educação da Região
Sul - ANPED Sul, estiveram presentes pesquisadores do
Rio Grande do
Sul, Santa Catarina e Paraná. Entre os participantes do evento,
esteve o professor e doutor em Educação Lucídio Bianchetti, que
participou como convidado
para a Sessão Especial do Grupo de Trabalho" Sociologia da
Educação".
Pedagogo pela UPF/RS (1978), mestre em Educação pela PUC-Rio (1982)
e doutor em Educação: História, Política, Sociedade pela PUC-SP
(1998), Lucídio Bianchetti é professor associado na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É também co-autor e
co-organizador das coletâneas: "A Bússola do escrever. Desafios e
estratégias na orientação e escrita de teses e dissertações"
(2ª ed. UFSC-Cortez, 2006); "A Trama do Conhecimento: Teoria, Método
e Escrita em Ciência e Pesquisa" (Papirus, 2008); "Um olhar sobre
a diferença. Interação, Trabalho e Cidadania" (8ª ed. Papirus, 2008);
"Interdisciplinaridade. Para além da filosofia do sujeito"
(8ª ed. Vozes, 2008). É organizador e co-autor da coletânea:
"Trama & Texto. Leitura crítica. Escrita Criativa"
(2ª ed. Summus, 2002). Também é autor do livro: "Da chave de fenda ao laptop. Tecnologia digital e novas
qualificações: desafios à educação" (2ª ed. Editora da UFSC, 2008).
Fonte:
www.autoresassociados.com.br
Ao final da IX ANPED Sul, ele conversou
com a jornalista Domenique Pastore Grigolo, do
Setor de Imprensa da Universidade. Leia a entrevista aqui abaixo.
Uma de suas linhas de atuação como
pesquisador é "Trabalho, Educação e
Novas Tecnologias". Quais são as possibilidades de interação entre
esses três aspectos aparentemente diferentes?
Uma questão que acho importante explicitar é como me inseri nesse
tripé. Eu tinha feito mestrado em Educação e à medida em que comecei a
trabalhar com vestibulandos na minha pesquisa, eu me dei conta que o
problema deles não era o vestibular em si, mas sim o que o vestibular
tem a ver com o trabalho que eles irão executar. E eu percebi que o
mundo do trabalho estava passando por mudanças muito profundas,
que exigia
novos equipamentos, novos profissionais, novos conhecimentos. Então,
eu decidi que eu não ia fazer o trabalho do doutorado numa sala de
aula, mas sim numa empresa e fui estudar o mundo do trabalho na área
de Telecomunicação.
Eu parti para a pesquisa com a seguinte pergunta:
qual é o tipo de conhecimento que uma pessoa formada na tecnologia
analógica, e que tem que trabalhar com a tecnologia digital precisa
desenvolver pra poder trabalhar? Ao longo do estudo vi que havia uma
diferenciação muito grande entre o que era necessário mobilizar de
conhecimento, de habilidades pra trabalhar com o modelo analógico, que
vem de anos, e uma mudança muito rápida para o modelo digital, que
exige novas qualificações.
Pra trabalhar com a tecnologia analógica se
mobiliza os sentidos, ou seja, você olha, você toca, então os sentidos
são a mediação com a tecnologia analógica e esse aspecto nós viemos
construindo desde o início da humanidade. E, de repente, nos
defrontamos com um tipo de tecnologia que passa a exigir uma só
habilidade para lidar com ela: poder de abstração. A partir desse
poder de abstração requerido pelas novas tecnologias, as categorias de
espaço e de tempo estão redimensionadas, ou seja, o tempo é mais
fugidio, mais curto, e a distância não existe mais, não é mais preciso
estar presente pra interagir com os outros. Então, não é pouca coisa
que está mobilizada na passagem de uma tecnologia pra outra.
Se antes uma tecnologia demorava gerações pra ser assimilada e, se nãofosse
assimilada não tinha problema, hoje essa assimilação se dá dentro de
uma mesma geração. Nesse cenário apresentado, a gente percebeque os
nossos alunos estão perdendo a paciência com aqueles professores que
não estão assimilando as novas tecnologias e a alternativa para muitos
professores vai ser sair da profissão, seja por meio da aposentadoria,
da troca de ramo profissional, pois eles não vão conseguir acompanhar
as mudanças nessa geração. Por isso, já há um conflito entre os
nativos digitais e os migrantes digitais. Pode parecer que algumas
pessoas resistem às tecnologias porque são teimosas, porque são
saudosistas ou porque não têm disposição. Não é verdade. Eu também sou
um migrante digital e a gente tem dificuldade em deixar uma cultura de
lado para assimilar outra bem diferente. É intrínseco ao gênero humano
resistir em largar algo que conquistou com muito esforço.
Você comentou que os alunos estão ficando sem
paciência com os
professores que não se apropriaram das tecnologias. Esses professores
estão se tornando profissionais obsoletos e descartáveis?
Esses dias eu assisti a uma cena numa escola, onde duas crianças, dois
alunos da quarta série, conversavam na hora do recreio e ao
passar uma
determinada professora, um aluno disse pro outro: "Vamos deletar essa
professora? Parece engraçado, mas é bastante sério, porque há um
sentimento de rejeição para com esses professores. Então imagine o
grau de sofrimento deles. Não é que eles não queiram aderir às
tecnologias, não é que não queiram interagir, mas envolve uma questão
que está submetida a uma determinada forma de educação, que dizia que
a gente deveria estudar sentado, em silêncio, e que não existe mais.
Imagina esse professor que se identifica com o modo com que se dá aula
há muito tempo e se esse modo de dar aula não é mais o certo, a
eliminação desse modo significa pra ele a consequente eliminação dele
também. Como ele não consegue distinguir que existem formas diversas
de trabalhar o conteúdo, ele se identifica com uma forma de conteúdo,
que é a transmissão, e o aluno se identifica com muitas formas
dinâmicas.
Então aquele professor que não pode abrir mão daquela forma
de educação que lhe dava segurança, que lhe permitia caminhar com
familiaridade, o mercado é que vai abrir mão dele. Assim, a gente
percebe que existe um grau muito elevado de sofrimento que está sendo
vivido por estas pessoas. O que transcende o envolvimento trabalhista
e torna-se uma questão humana, de gestão, desde a oferta de um tempo
maior para estas pessoas se adaptarem até a saída desses profissionais
das escolas. Há uma ligação intrínseca entre a pessoa e o trabalho,
quando devemos nos distinguir da nossa tarefa.
Nós estamos no meio de
uma mudança paradigmática, essa transformação é muito profunda e gera
muitos conflitos e a ruptura com o analógico é traumática também para
os professores. Antes, quando a gente olhava pro professor, quando a
gente pensava na escola, a gente pensava no passaporte para o mundo do
trabalho. E o professor era o mediador, ele que dava esse passaporte.
Agora o aluno olha professor e pensa: Esse cara não vai me ajudar.
Então o aluno encontra outras formas para ajudá-lo a ingressar no
mundo do trabalho.
Falando em transmitir conteúdos, o uso das
tecnologias serve para
aprofundar o conteúdo ensinado ou é apenas uma nova forma de ensinar?
Estamos vivendo uma época em que observamos uma perda da profundidade.
Nós temos hoje um leque de opções de aprendizagem, que não estão sendo
exploradas na sua totalidade. Teríamos um potencial inimaginável para
até dispensar o professor, não só daquilo que ele vem sendo
dispensado, mas também do sofrimento ao qual ele está sendo submetido
por não conseguir dar conta desse resíduo de tecnologia que chega até
as escolas. O professor está perdendo em termos financeiros e
simbólicos, no que se refere à autoridade. As tecnologias são uma
resposta a um maior número de perguntas que vêm sendo feitas, a
necessidades que vêm surgindo.
Então o professor não pode ser apenas
um transmissor de conteúdos, porque entre um professor que atua dessa
forma e um software de busca, que trabalha com muito mais dinamicidade
que o professor, fica óbvio que o aluno vai escolher o último. O
professor não pode concorrer com as tecnologias, elas devem ser um
complemento do processo de ensino e aprendizagem. A história da
humanidade mostra que as inovações tecnológicas não vieram para
anular as conquistas anteriores, mas sim pra somar.
E como o espaço acadêmico pode contribuir para
tornar essa passagem de
um modelo de tecnologia para outro menos traumática, para auxiliar os
professores a enfrentar os desafios das novas tecnologias e as
utilizarem em sala de aula?
A principal responsabilidade da Universidade é pensar sobre o
problema, refletir a respeito das questões envolvidas, o que é essa
mudança e de que formas ela se dá. Além disso, nas universidades, seja
via aquisições institucionais ou particulares, há a chance de haver
essa interação com as tecnologias. Na escola é um pouco diferente, é
preciso saber trabalhar com o mínimo de tecnologia que chega, então é
diferente para o aluno que não tem acesso e diferente para o aluno que
já tem acesso. Quer dizer, temos aquele aluno que não tem nenhum
contato com computador, por exemplo, e temos aquele que tem
equipamentos muito bons, então a escola fica nesse meio termo. E a
escola deve saber dessa sua condição, do seu papel de mediadora. Pois,
quando se fala em tecnologia, se fala em mediação, mediação entre eu e
o outro, entre eu e o conhecimento, entre eu e o mundo. E como essa
mediação é feita? Quais são as condições dadas para que essa mediação
seja feita?
Continuarão sendo necessários professores que se dediquem
ao aprofundamento, à reflexão, e serão bem-vindos aqueles professores
que, junto com a inserção das novas tecnologias, ajudem a refletir
sobre a importância dessas novas tecnologias para potencializar as
condições de essas crianças e adolescentes nas escolas se inserirem no
mundo do trabalho de uma forma mais qualificada. Então, o problema não
é o que está sendo feito ou o que deveria estar sendo feito pelos
professores nas escolas, mas sim com que condições eles contam para
poder fazer o que seria necessário, seja no aspecto tecnológico, seja
no aspecto de quem vai refletir sobre essas tecnologias.
Em resumo, a Universidade deve ajudar as pessoas a entender que
esse é um novo
momento da humanidade, mais rico, com mais potencialidades, mas
também
com novos desafios no aspecto cognitivo, no aspecto social-afetivo,
no
aspecto do trabalho.
Foto: Daniela Schiavo
|